Ramon Mello
Uma experiência
Todos os cachorros são azuis é um incômodo insolúvel. Incomoda como literatura. Sua construção literária não cabe nem no que se chamaria de "convencional", nem no que se diria "transgressor". É uma obra que se faz pelo todo, mas que também se faz pelas partes [como se cada parte também compusesse um todo]. A história se conduz sem obedecer à dicotomia previsível, porque, já da primeira página, espera-se que tudo possa acontecer. Mas até no inesperado, há deslocamento, há desestabilização.
Não se pode, contudo, negar que produza uma experiência estética: é de longe UMA EXPERIÊNCIA, é daquelas que se destacam no fluxo comum da vida. Incomoda como temporalidade. Passado, presente e futuro não existem. O que foi é, e o que é talvez não tenha sido, e o futuro já foi. É uma narrativa autobiográfica com ares de diário, de ficção científica, de fábula. "(...) mas não consegui sobreviver."
A narrativa fragmenta o tempo sem compartimentá-lo numa cronologia. Fragmenta o humano sem dividi-lo em caixinhas. Incomoda como loucura. Remarca o desconhecido como usual, e torna o usual desconhecido. Transporta a um lugar que não se controla, que não se conhece, sobre o qual não se pode falar como especialista, com aquele que detém em si todo o saber sobre este lugar. Não parece um mundo errado, anormal: não se trata de uma lógica que é infringida. Parece seguir uma lógica, uma estabilidade interna que me é desconhecida.
É um incômodo indefinível.
Quebra cabeça
A primeira palavra que me vem à cabeça quando tenho que falar de Rodrigo Souza Leão é lucidez. E com a sua lente de aumento voltada para o espelho ele nos presenteia a todos com seus escritos. Entre eles Todos os cachorros são azuis. É o nome do livro. É o nome da peça. “Tudo que é perigoso tem nome.” Ele diz.
Esquizofrenia era o seu diagnóstico. Mas Rodrigo não era louco. Era doente mental. E isso é muito diferente. Rodrigo era um poeta. Um escritor. Chamá-lo de louco é dar a ele um nome perigoso. É dar a ele e a tantos outros um destino prematuro.
Através da sua experiência acredito que podemos chegar perto de sua sanidade. E contribuir assim para uma discussão mais ampla a respeito da situação da população que sofre com esse destino. Clínica, hospício, manicômio, reclusão, prisão? Reféns de um pesadelo eterno. A peça busca alinhar os fatos do seu relato quando esteve internado depois de uma crise.
Rodrigo faz um autodiagnóstico de seu estado e um depoimento contundente sobre o estado das coisas quando fala em doença mental, tratamento, internação, drogas, medicação, família, sexo, solidão e amor. Ele cria um caleidoscópio de memórias, opiniões, citações, imagens, alucinações. Ouçam a memória de Rodrigo. Ouçam Rodrigo ouvindo Rimbaud e às vezes Baudelaire. Um quebra cabeça. Possível.
Uma fábula? Um relato? Um pedido de socorro? Um poema para cinco atores? Memórias de um cárcere? Uma biópsia? Uma viagem da memória? Eu prefiro não dar nome. Porque onde estou todos os cachorros não são azuis.
“O mundo é esquizofrênico”. O que quer nos dizer Rodrigo? Que o mundo é doente mental? A arte e a loucura sempre tão próximas, a arte e a mente. Rodrigo encontrou toda sua lucidez a respeito da própria doença através do seu contato com poesia, música, literatura, artes plásticas... Arte. Será que o mundo precisa de mais arte para então encontrar sua cura? Acho que a resposta de Rodrigo é sim. E eu também acredito nisso. Por isso aceitamos o desafio de transpor para o palcoTodos os cachorros são azuis e acreditar que isso é importante. “Quero ser promovido à alucinação de alguém”, implora Rodrigo.
Melhor: você foi promovido à admiração de alguém.
Nos últimos cinco meses tenho ouvido sua voz. Nos próximos meses muitos também vão ouvir.
Já somos muitos Souza Leão. Já somos muitos Todog.
Michel Bercovitch
Um comentário:
Bom ler os depoimentos todos. Não fui à peça, Ramon, mas irei. E sei que vou gostar! Muito sucesso!
Rosane Villela
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