quarta-feira, fevereiro 24, 2010

CEM PORCENTO POESIA


A virtude de ser inútil

Por Ramon Mello

Há quem se surpreenda ao descobrir que os documentários Fábio Fabuloso (2004) e Só Dez Porcento é Mentira (2008) foram dirigidos pelo mesmo cineasta: Pedro Cezar. O que tem a ver poesia e surfe?

“Quem pega onda olha a vida do ponto de vista do horizonte e lida com ninhos de água. Quem gosta de poesia também olha a vida do ponto de vista do horizonte e também lida com ninhos de água. Fabio Gouveia e Manoel de Barros são poetas. O primeiro escreve no mar sem partir a linha e o segundo diz que ‘imagens são palavras que nos faltaram’ Os dois produzem encantamentos e nos fazem transver”, afirma o cineasta, que pega onda desde os 10 anos e é autor de dois livros de poesia: Puizía e Concepção de Frases em Ninhos de Água.

A transição de um filme para outro - “se houve foi fluida, tranqüila” - moldou o olhar de Pedro Cezar, capaz de captar instantes preciosos de personagens que fazem do dia-a-dia mais do que uma simples repetição de fatos. A prova desse ponto de vista está no cinema, num filme definitivo sobre a vida do poeta Manoel de Barros: Só Dez Porcento é Mentira - a “desbiografia” oficial de um dos principais poetas contemporâneos.

“O filme prioriza eventos desimportantes, iluminuras, ‘reino da despalavra’, escamas das horas, ‘pétalas das ondas’ e comparecimento aos desencontros. O filme deliberadamente exclui datas cronológicas, batizados, formaturas e bodas de ouro. Chamamos a esse tipo de narrativa, ‘desbiografia’. ‘Transver’ a obra nos pareceu mais adequado do que enumerar datas e informações biográficas.”

O título do filme refere-se a uma frase do poeta: "Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira". As palavras de Manoel de Barros conduzem a narrativa ao ‘reino da despalavra’. É com as palavras de Manoel de Barros escritas na tela, que o diretor captura o espectador/leitor logo no primeiro frame do longa:

“Há várias maneiras de não dizer nada. A poesia é uma delas”.

Aos poucos, o poeta permite ser desvendado. Mas, antes disso, o diretor teve o trabalho de convencê-lo a aceitar o projeto do filme. Conta a lenda que, por mais de 70 anos, o poeta deu entrevistas somente por escrito. Manoel de Barros só concordou em participar das filmagens depois de inúmeras visitas da equipe à fazenda, em Corumbá. Fazer o poeta falar não é tarefa para qualquer pessoa, um mérito incontestável. Pedro Cezar ficou durante dias insistindo, mas o poeta era categórico: "sou um ser letral" ou "o melhor de mim é a minha obra e ela está à sua disposição". Quando o cineasta desistiu, alegando que a idéia não se passava de um “sonho”, o poeta resolveu participar da história.

Para amarrar a narrativa poética, o filme é recortado por depoimentos de artistas que tiveram seu trabalho enriquecido pelas palavras de Manoel de Barros: a atriz e poeta Elisa Lucinda; a poeta e filósofa Viviane Mosé; a atriz e jornalista Bianca Ramoneda, que encenou Inutilezas; o cineasta Joel Pizzini, que fez o curta Caramujo flor (1988); e o escritor e jornalista Fausto Wolff – falecido em setembro de 2008 – lembra que “o mundo precisa dos poetas”. A escolha dos depoentes nem sempre é escolha fácil, principalmente quando se trata em apontar “pessoas que são ‘órgãos extensivos’ do idioleto Manoelês”.

“Até hoje fico confuso se boto o feijão por cima ou o arroz para cobrir. Isso sem falar da farinha. Seria uma tremenda injustiça esquecê-la. O processo de escolha foi fruto de pesquisa, empatia, logística, várias entrevistas e muitos testes de elenco. Fui atrás de pessoas que eu sabia que tiveram suas vidas transformadas pela leitura dos versos do Manoel.”, explica o diretor.

Manoel de Barros começou a publicar em 1937, com Poemas concebidos sem pecado. Mas só ficou conhecido nos anos 80, quando Millôr Fernandes começou a publicar poemas de Manoel nas colunas nas revistas Veja, IstoÉ e no Jornal do Brasil. Outros intelectuais apostaram no poeta, entre eles Antônio Houaiss. Manoel tem mais de 20 livros publicados e, dentre os mais conhecidos, Compêndio para uso dos pássaros; Livro sobre nada; Gramática expositiva do chão e Arranjos para assobio.

Mas, a que se deve a popularidade do poeta? Pedro Cezar arrisca uma resposta:

“Teve uma época que desejei ardentemente ter um livrinho meu prefaciado pelo Manoel. Ele deu um toque melhor que qualquer prefácio. Me disse: "o único cartão de visita de um poeta é o que ele escreve". A popularidade do Manoel se deve exclusivamente a qualidade absurda de seus versos. Ele começa com maiúscula e termina com ponto final mas no miolo coloca encantamentos próprios e linguagem única. Manoel não virou letra de música que toca em rádio, não está na mídia e nem tem ex-mulheres gritando nos jornais atrás de pensão indenizatória. Mesmo assim, quem pega um livro dele se sente aditivado e sai por aí repassando seus versos. Isso é incrível. Cada leitor de Manoel o multiplica tal qual o milagre dos peixes.”, conclui.

No filme, durante a conversa com Manoel de Barros, o cineasta pergunta: “Pra que serve poesia?” O poeta dá uma risada e diz:

“Essa pergunta já foi feita”. Em seguida, completa: “Poesia é a virtude de ser inútil”.

A partir dessa declaração, o diretor elabora a definição do seu filme: “É longa-metragem concebido e realizado por uma equipe de desocupados da área audiovisual que documenta a longa trajetória de aquisição do ócio do poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros”.

“Pra que serve poesia?”, repito a pergunta ao diretor.

“Essa pergunta é inesgotável. E ao mesmo tempo, irrespondível. Mas vou tentar assim mesmo: poesia serve pra fazer o tempo andar de costas. Melhor dizendo... poesia serve pra fazer o tempo não se dar conta. ‘Desexplico’: tem um peixe bem grande que fica escondido debaixo da quina do horizonte. Toda vez que alguém faz um poema, o peixe pisca pras nuvens e sopra uma onda em direção à vida. A onda anda e nem se percebe. Sorte de alguns surfistas. Ou de certos poetas."

O documentário foi produzido entre 2005 e 2008, em parceira com Kátia Adler e Marcio Paes. Estreou no Festival do Rio de 2008 e levou o prêmio de melhor documentário na segunda edição do Festival Paulínia de Cinema 2009. Depois de cumprir o maior ciclo possível de viagens e festivais, distribuído em formato digital, o filme está exibido em apenas duas salas no Rio de Janeiro (Unibanco Arteplex e Cine Santa Teresa) – antes ficou em São Paulo, com matérias e críticas elogiosas em jornais.

“Muito filme pra pouca sala!!!”, esperneia Pedro Cezar.

Só Dez Porcento é Mentira fica para a história para revelar a alma de Manoel de Barros, assim como a obra do poeta. Está em cartaz até o dia 28 fevereiro.

[Texto publicado originalmente no portal Cultura.RJ, da Secretaria de Cultura do Estado]

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

DESTINO POESIA

"Às vezes, a melhor maneira de interpretar um poema é escrever outro poema. Imprescindível pra curtir poesia da melhor forma é fazer leituras em voz alta dos poemas que preferimos ou daqueles que precisamos entender melhor. Ler um livro de poesia é sempre reler os poemas que nos agradaram numa primeira folheada básica. Ler poesia deve ser feito de maneira respirada, a intervalos. Não se lê um livro de poesia como um romance - leitores de poesia têm de poder embaralhar a ordem de leitura, começando, se quiserem, pelo meio, pelo fim, ou simplesmente indo e voltando.”

Ítalo Moriconi, trecho da apresentação da antologia Destino Poesia (José Olympio), que reúne os poetas Ana Cristina Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Torquato Neto e Waly Salomão.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

2.6

Julia Breckenreid

O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?

"Estou (re)lendo o livro Vinis Mofados, escrito pelo jornalista e ator Ramon Mello. Ramon pertence à novíssima geração de poetas inquietos e talentosos, ao lado de nomes como Augusto Guimaraes Cavalcanti e Bruna Beber. Destaco em seu texto o trabalho cuidadoso e produtivo com a linguagem, a extrema sensibilidade com as imagens e a afirmação de uma póetica que transita entre a tradição e a inovação."

Júlio Diniz
Diretor do departamento de letras da PUC-Rio

[Jornal do Brasil, Idéias - 13.02.10]

domingo, fevereiro 07, 2010

MORO NA ROÇA

[Clementina de Jesus]



[Mônica Salmaso]



Moro Na Roça

Composição: adaptação de tema popular de Xangô da Mangueira e Zagaia

Eu moro na roça iaiá
Eu nunca morei na cidade
Eu compro jornal da manhã
É pra saber das novidades

Eu moro na roça iaiá...

Minha gente cheguei agora
Minha gente cheguei agora
Minha gente cheguei com Deus
E Nossa Senhora

Eu moro na roça iaiá...

Xique Xique Macambira
Filho de Preto d'Angola
Inda bem não sabe ler
Já quer ser meste de escola

Eu moro na roça iaiá...

Era tu e era ela
Era ela era tu e eu
Hoje nem tu nem ela nem ela
nem tu nem eu

Eu moro na roça iaiá...

sábado, fevereiro 06, 2010

SEBOS, MARES, DIÁRIOS

Encontrei meu livro num sebo. É uma sensação estranha, ainda não sei explicar. Não fiquei triste, não é um sebo qualquer, é o Berinjela – um dos sebos mais charmosos do Rio, fica no subsolo de um prédio comercial no Centro, vizinho da livraria Leonardo da Vinci e do café Gioconda. Almoço por ali, toda semana, por causa do trabalho, sempre faço uma horinha no sebo e/ou na livraria. Não resisti, perguntei se meu Vinis Mofados ainda estava por lá. Sim, estava. Um exemplar de imprensa, não lido. Fiquei em dúvidas de comprá-lo: R$ 17. Nas livrarias ele custa R$ 25. Decidi deixá-lo ao acaso, à espera de um possível leitor.

Freqüento muitos sebos, meus prediletos são o Baratos da Ribeiro (Copacabana) e o Luzes da Cidade (Botafogo) e o Mar de Histórias (Copacabana), além do Berinjela. Sinto muito prazer em descobrir edições raras ou, simplesmente, esbarrar com um livro desconhecido. Outro dia, encontrei Como você se chama?, do escritor Raimundo Magalhães Jr., autor da biografia do poeta Casimiro de Abreu. Esse livro é incrível, trata-se de um longo ensaio sócio-psicológico de prenomes e cognomes, publicado em 1974. Esse exemplar foi pescado no Luzes da Cidade, enquanto eu esperava a sessão do filme Erva Daninha, de Alain Resnais. Assim que terminar a leitura do livro, vou escrever sobre os tais nomes. Drummond era aficionado pelo assunto, sabia?

Voltando ao Berinjela, garimpei o Diário Completo (José Olímpio Editora) do escritor Lúcio Cardoso, uma edição de 1970, que pertenceu à "Biblioteca de Esmeralda S. R. de Oliveira", adquirido no “Natal de 1971”. Há um lindo poema do Drummond, escrito quando Lúcio teve o derrame fatal, publicado no Correio da Manhã no dia 20 de setembro de 1968:

A LÚCIO CARDOSO, NA CASA DE SAÚDE
Carlos Drummond de Andrade

Entre visitas que perguntam
no corredor, por tua vida
de artista recolhido à noite
sensorial, entre amigos
que se inclinam preocupados
sobre a cisterna, e não distinguem
Teu reflexo brilhar no fundo,
Entre os mais próximos e diletos
- eu não estou, porém de longe
mais perto me sinto e decifro
melhor teu perfil na sombra,
e o perfil não só; tudo mais
que deu sentido a teu chamado
à rua dos homens: palavras
tramadas em papel, soando
em palco, problemas falantes,
movediços em preto-e-branco,
projeção em tela ou parede,
em cor quase som, mensagens
da mais subterrânea estação,
retratos espectrais do ser
para além da radiografia,
e um hálito de amor pedindo
espaços claros, praias de ouro
que se vão modelando em sonho
acordado, escrito, pintado.
Respiras, falas, comunicas-te
à revelia do corpo enfermo
em tudo que é sinal; contemplo
tua vida primeira e plena
a circular, transfigurada,
ó criador, entre vazios
sótão da casa abandonada

Se não fosse o livro da Esmeralda, talvez, eu não conhecesse o poema, que tem os sete últimos versos sublinhados. O que mais adoro nos livros usados são os comentários nas bordas das páginas, as frases sublinhadas, as dedicatórias... Meus livros são todos rabiscados, caneta ou lápis, não importa. Deixo a marca da leitura, assim me surpreendo nas releituras.

Quando entro num sebo, sempre me lembro do romance De cabeça Baixa (Guarda-Chuva), de Flávio Izhaki. Você gosta de sebo? Leia: "Na história contada por Flávio, o protagonista, Felipe Laranjeiras, encontra seu romance, Desencanto, num sebo em Curitiba – lugar escolhido de ‘exílio’ pelo personagem, após o fracasso do primeiro livro e de um relacionamento amoroso. As páginas do exemplar encontrado estão cheias de anotações críticas. Quem escreveu os comentários? Essa pergunta seduz o leitor e o caminha para uma narrativa angustiante e bem estruturada.", escrevi esse texto quando entrevistei Izhaki para o blog Click(In)Versos, em 2008.

Ao chegar em casa, com o diário de Lúcio nas mãos, postei a seguinte frase no Facebook:

"não admito vida longe do mar"

Moro em Copacabana, mas acho que mergulhei em tudo isso por saudade de Araruama, do passado. Uma de minhas lembranças mais felizes: o acampamento em Praia-Seca, com meu pai e meu avô, catando tatuí na areia. E, memória recente, a saudade da alegria efêmera dos fins de semana em Ilha Grande, deitado no píer.

Enfim, abri o diário de Lúcio Cardoso na página 12 e li o quarto parágrafo:

"o mar, a proximidade do mar torna as coisas mais limpas.", agosto de 1949.

O acaso?

Freqüentar sebos é resgatar passados, mesmo que não sejam nossos.


>>> Sobre Lúcio Cardoso:

Fragmentos do documentário Lúcio Cardoso, de Eliane Terra e Karla Holanda:




Homenagem a Lúcio Cardoso, em Curvelo, Minas Gerais:

terça-feira, fevereiro 02, 2010

ODÔ IYÁ, IEMANJÁ!



leia.

CULTURA.RJ

estreou o Cultura.rj, portal da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro:

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