domingo, outubro 31, 2010

ONDE ESTÁ O AUTOR?

Criação coletiva na nova era

Artistas mostram como improvisações podem ganhar visibilidade mundial ao misturar tags e links

Por Ramon Mello

Uma obra pode nascer de uma criação coletiva? Sim. Nas artes, em especial no teatro, a expressão "criação coletiva" é bastante conhecida. Inúmeros grupos de artistas - Asdrúbal Trouxe o Trombone, O Teatro do Ornitorrinco, Mambembe, Ventoforte - já provaram que a construção de uma obra a partir do grupo, através de um processo improvisado, pode ser muito bem realizada quando se tem pesquisa e repertório consistentes.

A extensão desse conceito pode ser vivenciada na web, para além dos limites territoriais, em outras áreas artísticas como a música e a literatura. Em tempos de Web 2.0, os músicos não têm se limitado a compartilhar vídeos ou baixar músicas na rede. Mesmo a criação não sendo propriamente uma novidade, o Control C + Control V pode colaborar e muito na recriação de um trabalho artístico.

O autor de um projeto original pode ganhar uma visibilidade mundial em poucos dias, ao se misturar entre tags e links. O músico israelense Kutiman, de 27 anos, por exemplo, era pouquíssimo conhecido até que no começo desse ano disponibilizou sua ideia na rede.

Kutiman criou o projeto Thru You e ficou famoso como "o homem que entortou o YouTube". Ele combinou trechos de sons e imagens desconhecidos, criando assim músicas inéditas, como um jazzista a improvisar. Suas experimentações são cultuadas por especialistas do universo musical como verdadeiras obras primas.

Há poucos dias foi a vez do músico Andy Rehfeldt, que ganhou fama por transformar toda a música e manter a característica dos artistas: o metal vira música da Disney e o pop vira metal. Um dos vídeos mais conhecidos é Enter Sandman (Metalica) apresentado em smooth jazz.

Para o compositor e cantor Dimitri BR, autor do projeto Diahum, que consiste em publicar online uma videocanção original, a cada dia primeiro do mês, o trabalho de Kutiman pode ser considerado autoral. O que coloca em pauta a discussão a expressão artística autoral.

"O Kutiman está tocando a internet, utilizando elementos que já existem como instrumento musical. A imagem é determinada pelo som, o que aparece é consequência do som que se quer ouvir. Eu considero o trabalho do Kutiman autoral, embora as influências estejam explícitas. As colaborações estão presentes, é inegável, mas o DJ é o autor. O imbróglio é comercialização. Como pagar os samplers? É a questão. Mas o crédito é indispensável, pois a divulgação é grande moeda de troca", afirma Dimitri, que disponibiliza seu trabalho, Música Sólida, para download na internet através do Pay with a Tweet - site que permite o usuário baixar vídeos, músicas inéditas e e-books, "pagando" ao artista através da divulgação do seu trabalho em comunidades virtuais como o Twitter.

Em território tupiniquim, o músico João Brasil criou o blog 365 Mashups, um projeto em que reúne mashup diferente por dia desde o primeiro dia de janeiro de 2010, faz mistura satíricas de Steve Jobs com Lady Gaga, Beatles com Funk e Tessália com Glen Gould. Há dois anos, até mesmo o carioca Marcelo Camelo, ex-Los Hermanos, se encantou com esquizofrenia audiovisual da internet e inventou fazer colagens com pedaços de vídeos do YouTube. O projeto, intitulado Orquestra YouTube, foi tomado como experiências de e-music e levado para o palco.

Assim, misturando o acorde de um guitarrista brasileiro, o vocal de um músico inglês e alguns samplers de diferentes canções, temos um mashup - expressão cunhada a partir de remixagens musicais, também conhecidas como bastard pop ou bootlegs. A cultura do mashup já foi apropriada pela música contemporânea, marcada pelo caos e fragmentação, mas há quem defenda que literatura é pioneira nessa "brincadeira".

"Dá pra dizer, por exemplo, que a técnica literária dos “cut-ups”, que utiliza fragmentos de frases, versos e outros textos, e que foi largamente usada por autores tão diferentes como William Burroughs, T. S. Eliot e Julio Cortázar (em especial, no seu O Jogo da Amarelinha), foi uma precursora dos mashups.", defende o escritor e jornalista Alexandre Inagaki no artigo 'É misturando que a gente se (des)entende'.

O escritor Leonardo Villa-Forte, o DJ da literatura, realiza com o projeto MixLit um trabalho de seleção e edição de textos, assim como os DJs que adicionam e cruzam instrumentos e músicas em uma única faixa. A mistura diversos autores e estilos pode gerar surpreendentes mash-ups literários.

"O Mix Lit surgiu no fim do ano passado, durante minhas leituras percebi a conexão entre os textos e o caráter político sobre o trabalho do leitor/autor. Neste projeto, sou autor de um remix, de um mashup, busco as palavras nas páginas de outro. A grande questão é a comercialização dessa obra. Há um livro do Flavio Carneiro, O Leitor Fingido, que fala justamente dessa liberdade do leitor. A tradição literária, de uma certa forma, é um grande mashup", diz Villa-Forte que pesquisa e seleciona trechos de diferentes autores, consagrados ou não, para misturar num novo texto, intitulando seu trabalho de "literatura remixada".

Toda essa ideia remixagem lembra a composição Remix Século XXI (1999), de Wally Salomão e Adriana Calcanhotto: "Armar um tabuleiro de palavras-souvenirs. / Apanhe e leve algumas palavras como souvenirs. / Faça você mesmo seu microtabuleiro enquanto jogo linguístico".

Entre o amalgama de tantas vozes, é fácil notar que autoria está em processo de transformação. O semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980), autor do polêmico texto A Morte do Autor, entendia o escritor como o imitador de um gesto anterior a ele, nunca original. Assim sendo seu único poder misturar escritas. A questão é entender como preservar os direitos de múltiplos autores.

[Estadão - 31/10/2010]

quinta-feira, outubro 28, 2010

foto: Marcos Dantas

"deus te crie, poeta", Adélia Prado me disse

foto: J. Egberto

>>> para quem não ouviu o cbn na travessa com a adélia prado, AQUI!

REENCONTRANDO ADÉLIA


Adélia está ali na livraria "Travessa" do Leblon/Rio, num auditório apinhado de leitores atentos, respondendo perguntas durante o lançamento de "A duração do dia"(Record). Chegamos meio atrasados, Marina e eu, e ficamos em pé ouvindo. Linda essa Adélia, com esses cabelos brancos, aquele rosto maduro, falando sobre a alucinação que é escrever poesia.

De repente, ela quer citar aquele tradutor de Guimarães Rosa, o nome lhe escapa, eu sopro de onde estou: "Gunter Lorenz" . Ela nos reconhece, abre um sorriso familiar, acolhedor, e diz que recomendou que a uma repórter me perguntasse sobre aquela estória de como a ajudei na publicação de seu primeiro livro. Ela já está cansada de contar isto.

Realmente a repórter me havia telefonado minutos antes, e contei o que já virou folclore: não nos conhecíamos, mas Adélia me enviou seus poemas. Eu li aqueles textos, alguns manuscritos e fiquei maravilhado. Como quando a gente descobre uma pepita de ouro na bateia, ou uma nova estrela no firmamento, telefonei para Drummond e disse: -alvíssaras! surgiu uma poeta em Minas!

A gente sabe que isto não ocorre todo dia. Mineração poética é coisa árdua. E os astrônomos levam tempo para achar algo novo nos céus. E aquela era uma estrela, das grandes. Estava madura. Pronta. Tinha brilho ( ou redação própria).

Quis o destino (e a força de sua poesia) que nossos caminhos se cruzassem. Era eu crítico da "Veja" e resenhei seu primeiro livro ajudando a divulgá-lo além das montanhas. Na verdade, o lançamento do livro no Rio já tinha sido um acontecimento. Além do ex-presidente Juscelino aparecer na noite de autógrafos, também Rubem Braga a recebeu em sua cobertura. E Adélia ali, com sua simplicidade autêntica, imaginem! pedindo autógrafo das celebridades presentes. Ela que em Paraty, há pouco tempo, teve uma fila de 5 horas de leitores ansiando por seu autógrafo.

De outra feita, uma ex-aluna que trabalhava com Roberto Dávila instigou-o a entrevistar Adélia. Ele chamou-me para ajudá-lo. Ela falou aquelas simplicidades que extasiam todo mundo. Pois Fernanda Montenegro, que é mineira, se achou nas palavras dela e me telefonou pedindo para contatá-la. Surgiu então o espetáculo ""Dona Doida".

Aliás, essa estória engraçada: Ziraldo estava em Belo Horizonte no projeto "Encontro Marcado" e implorou a Arakén Távora:-Me leve a Divinópolis, tenho que conhecer Adélia. Ao que Arakén comentou: -Imagine, o Menino Maluquinho quer conhecer Dona Doida!

O que é que a poesia dessa mulher tem?

Leiam as dezenas de teses e não sei quantos ensaios sobre sua obra.

Mas tem algo mais. Agora ela está ali falando aos seus leitores. Diz que é necessário paciência e humildade para merecer um poema. Que um poema não é um artefato racional. Que a obra de arte é melhor que seus autores, pois fala de nossa densa humanidade. E o mistério continua.

Cássia Kiss e Ramon Mello lêem vários de seus poemas. E o mistério continua. Sua fala termina, nos abraçamos, tiramos retrato, forma-se a imensa fila, converso com José- o marido- singularíssima figura.

Vou para casa e leio os poemas, aumentando a duração do dia e da noite.

O artista é aquele que se dá o luxo de ouvir sua voz interior. Há ruídos demais no mundo e a poesia, quando autêntica, recupera nossos elos perdidos. Elos que nem sabíamos existir, mas que vão se compondo no fragmento das palavras até que de repente o sentido emerge.

E poesia é isto, revelação, epifania.

quinta-feira, outubro 21, 2010

XEPA LITERÁRIA


na primavera dos livros, museu da república: todos os livros da língua geral em promoção.

'vinis mofados' a preço de banana!


terça-feira, outubro 19, 2010

POESIA, CONVITES



no dia 23 de outubro, sábado, às 18h30, no museu da república, vou mediar, junto com a escritora suzana vargas, uma conversa com o poeta ferreira gullar.


no dia 25 outubro, segunda-feira, às 19h, na livraria da travessa do shopping leblon, adélia prado vai lançar 'a duração do dia'. haverá um talk show com a poeta, mediado pela jornalista e escritora simone magno. vou ler, com cássia kiss, os novos poemas de adélia.

vamos?

SOBRE FLORES

os lírios gostam de se abrir na madrugada, ao som de um piano

segunda-feira, outubro 18, 2010

IMPRECISO



omar salomão transformou seu novo livro de poemas numa exposição de artes plásticas, 'impreciso'. leia mais, aqui.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Philippe Halsman [ Jean Cocteau ] 1948

'BAR DO MIGUEL'

Quando o garçom se materializa

DE BAR EM BAR (78) – Rosa de Ouro

Por Mauro Sta. Cecília

Conheci o jornalista Ramon Mello quando fui entrevistado por ele há uns três anos (por ocasião do lançamento de um livro meu). Logo no início daquele papo, nas primeiras indagações, percebi que ele era também artista num sentido amplo. Depois disso, de fato, ele surgiu com livro de poesia (Vinis mofados), a curadoria da obra do ótimo escritor Rodrigo Souza Leão (morto precocemente), diversas entrevistas com nomes (realmente) de peso e uma peça de teatro (adaptada de uma obra de Souza Leão). Hoje ele é o meu convidado neste boteco de belíssimo nome: Rosa de Ouro.

Quando fui combinar com ele onde iríamos, sugeri uns quatro ou cinco bares. Mas ele devolveu: “Conhece o Rosa de Ouro, no início da Voluntários da Pátria? Adoro aquele lugar barulhento, e tem o melhor garçom do Rio, o Miguel.” Topei no ato, pelos adoráveis motivos alegados (o “lugar barulhento” e, claro, o nome improvável do garçom).

Chego primeiro, por volta de 18:30 h, e o pequeno bar inicia o seu movimento camaleônico para o turno da noite – assim como ocorre, por exemplo, com o Bar Rebouças no Jardim Botânico: durante o dia um pé-sujo normal, de noite um bar descolado. A essa hora ainda consigo pegar uma mesinha de calçada na beirada do bar. A vista é panorâmica pro rush dos automóveis e dos passantes e para as duas outras mesas por enquanto ocupadas do lado de fora, com dois amigos numa e noutra um cara e uma menina, ambas as duplas nos seus 20 e poucos anos.

Enquanto tomo uma primeira Antarctica, eis que chega o poeta Ramon (com seus 26 para baixar consideravelmente a média de idade da mesa), chega inquieto, pede um copo, puxa logo uma cigarrilha e o papo não para mais. A fim de acompanhar nossos pensamentos líquidos (título de um poema dele), me apresenta ao garçom Miguel, que ainda não havia se materializado (muito simpático e totalmente diferente do que eu imaginava). Pedimos mais outra cerveja e uma pizza marguerita, uma das especialidades da casa, levinha, na linha do bom, bonito e barato. Outras opções: iscas de fígado, salsichão, feijão amigo, bolinho de bacalhau. E os pratos: milanesa à parmegiana, estrogonofe, fritada de bacalhau e viradinho à paulista.

Ramon Mello, nascido em Araruama e emancipado aos 16 (desde cedo decidiu que sairia da cidade), veio para o Rio estudar teatro na Escola Martins Pena e acabou fazendo também jornalismo. Em oito anos de Rio, morou em seis lugares diferentes e nesse tempo, a partir de suas entrevistas, conheceu boa parte dos faróis da cultura brasileira. Entrevistou, por exemplo, seus ídolos João Gilberto Noll e Fernanda Montenegro. E mais nomes como Sérgio Britto, Ferreira Gullar, Michel Melamed, Heloísa Buarque de Hollanda e o próprio Rodrigo Souza Leão (de quem se tornou próximo a partir de um único encontro e de quem recebia toda semana uma ligação telefônica, sempre no mesmo dia e horário). Depois de sua morte, recebeu a obra do amigo para cuidar.

Algumas cervejas consumidas, o bar está fervilhando com a calçada apinhada de gente. O movimento do tradicional pé-sujo de bairro cresceu muito em função dos estabelecimentos que se avolumaram ali perto: cinemas, livrarias, pé-limpos e boate. O escritor Ramon, depois de nosso encontro, ainda vai a um lançamento de livros de dois amigos. Ainda pedimos com a saideira uma porção de bolinho de bacalhau, que veio apenas razoável. (Mas acho que ninguém aqui se importa muito.) Para finalizar, pergunto ao meu promissor convidado o que ele tem ouvido ultimamente. Moska e o grupo português Três Marias. O inquieto Ramon é um cara antenado, assim como esse bar Rosa de Ouro (cujo nome foi tirado de um histórico show de Paulinho da Viola e Clementina de Jesus), do bom Miguel. Sim, caro leitor, existe um garçom chamado Miguel. Saúde e até a próxima.

Rosa de Ouro – Rua Voluntários da Pátria 1, lj 11, Botafogo (2527-0565)
e essa tristeza que não passa?

quinta-feira, outubro 14, 2010

"E pensei em quanto eu tive sorte na vida por seguir o conselho do tio Lucho e ter decidido, aos 22 anos, naquela pensão madrilenha da rua do Doutor Castelo, em algum momento de agosto de 1958, que não seria advogado, e sim escritor, e que, desde então, ainda que tivesse de viver com pouco dinheiro, organizaria minha vida de modo que a maior parte do tempo e da energia fossem dedicados à literatura, e que eu só buscaria empregos que me deixassem tempo livre para escrever."

['quartoze minutos de reflexão' com vargas llosa, leia o texto na íntegra no estadão]

terça-feira, outubro 12, 2010

DIZEM QUE SOU LOUCO




Me roubaram uns dias contados (Record, 2010), Rodrigo de Souza Leão

Na passagem dos dias

O livro póstumo de Rodrigo de Souza Leão (1965/2009), “Me roubaram uns dias contados” é um romance com muitos personagens e um só, o próprio autor. Ele costura a narrativa ficcional com situações de seu cotidiano e outras referências ao mundo real. Vida e ficção quase não se distinguem.

Trata-se do quarto livro de Rodrigo de Souza Leão, que também era músico e poeta. O segundo livro, a novela “Todos os cachorros são azuis” (7 Letras, 2008) foi produzido com incentivo do Programa Petrobrás Cultural e um dos 50 finalistas do Prêmio Portugal Telecom. A atual produção faz parte do projeto da Editora Record de edição da obra inédita de Rodrigo. A organização do acervo está a cargo do escritor Ramon Mello.

O autor sofreu um surto psicótico que o levou a aposentadoria precoce aos 23 anos. Desenvolveu o que popularmente se chama síndrome do pânico e ficou sem sair de casa por vinte anos. A loucura é o principal tema de sua obra.

Pouco antes de sua morte, Rodrigo de Souza Leão começou a sair para freqüentar aulas de pintura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Estava se destacando e sendo incentivado pelo professor e artista plástico João Magalhães, mencionado na nota de abertura do livro. A capa é um dos quadros de Rodrigo. Além destas referências diretas, o livro faz menção ao mergulho nas artes plásticas pelo autor através do personagem “Van Gogh brasileiro”, que não tinha uma orelha, pintou uma série de quarenta quadros em curto espaço de tempo, ganhou o prêmio Nobel da paz e era atazanado por um sósia. Paralelamente, ficou grávido de um extraterrestre e deu a luz a um híbrido que nunca chegou a ver.

A narrativa de Rodrigo aparenta ser totalmente fragmentada, mas não é. Ainda que crie e abandone personagens, divague entre considerações sobre a escrita, vida, loucura, juventude , frustração e dirija-se diretamente ao leitor para confessar que está ali enchendo lingüiça, faz de modo que a narrativa não se perca.

Vários personagens surgem, situações absurdas ocorrem e o leitor as perpassa como quem entra numa enorme construção cheia de cômodos e escadas, abrindo e fechando portas. O que se fragmenta são as diversas histórias, não a narrativa. O autor começa uma para logo perder o fio e iniciar uma outra. Diz que está tentando fazer um romance e que talvez não consiga. No entanto, o texto acaba sendo uma ficção sobre um escritor que tenta escrever um romance e por sofrer abalos psíquicos e “não ter o talento de Proust” não consegue terminar a história que estaria desenvolvendo. E cria outra e mais outra. Surge daí um personagem-narrador, elo de ligação entre as câmaras de suas histórias, ele mesmo transmudando-se em uma série de personagens, porém sempre reconhecível.

Dando ritmo a narrativa com uma freqüência que dá a impressão mesmo de ter sido calculada, são citados trechos de grandes sucessos da música brasileira, facilmente reconhecíveis pela notoriedade. Isso cria um elo com o imaginário do leitor que já tem onde se segurar durante as inúmeras mudanças no texto. A primeira vista aparentam ser fragmentações ou quebras no discurso. Uma leitura mais atenta percebe que não há quebra real e sim passagens sutis, quase imperceptíveis. Podemos encarar estas passagens como portas que ligam uma história a outra, ou transmutações de uma história em outra. O texto possibilita várias leituras.

O autor cita seu primeiro livro em prosa. Amarra sua vida literária dando coerência ao novo trabalho. A voz é a mesma com a diferença de que "Todos os cachorros são azuis" possuía nitidamente começo, meio, fim e apenas uma trama, constituindo-se numa novela. Em "Me roubaram uns dias contados" há várias tramas, situações de conflito e resolução, que ainda que não sejam escritas de forma tradicional, conseguem oferecer a estrutura de um romance tal qual conhecemos.

Outro dado importante na literatura de Rodrigo de Souza Leão reside no fato de que ele aproveita que o leitor de prosa esteja ali para que leia prosa poética ou poemas disfarçados de prosa: “A maioria das pessoas não tem assunto. Eu tenho assunto, mas prefiro ficar calado. Ninguém acredita no que falo. Não sei por que estou falando agora. Falo porque não sou ninguém e não me incomoda ser nada.” Neste aspecto, nos lembra Clarice Lispector que, apesar de não ser poeta, trazia em seus textos uma enorme carga poética e filosófica. Fazia isso através da boca de seus personagens. Entrava em contato direto com o leitor, remetendo-o a questionamentos profundos sobre a linguagem e a existência.

O mesmo ocorre, guardadas as devidas proporções, com o texto de Rodrigo de Souza Leão. Em alguns momentos, a narrativa é apenas um pretexto, uma armadilha, para pegar o leitor que se defronta com poesia. Construções lógicas, alumbramentos do autor são arremessados sem aviso prévio, nas brechas de suas “histórias”, nas pretensas quebras do discurso. Mas se a semelhança com Clarice Lispector se apresenta através da prosa poética na narrativa, o humor e o universo do absurdo de Rodrigo o atira para longe de dela. Não há momentos solenes na narrativa de Rodrigo. Se por acaso alguma frase esbarra neste terreno, é por ínfimos momentos que logo se revezam com deboche e ironia.

Conta-se que o autor, queria escrever um livro de seiscentas páginas, para que ele pudesse ficar em pé sozinho, apoiado em sua base. Não escreveu seiscentas páginas, mas produziu uma arquitetura capaz de dar ao texto a estrutura necessária para se manter de pé até o fim, como um bloco coeso.

[Elaine Pauvolid - JB digital, dia 9 de outubro de 2010]

segunda-feira, outubro 11, 2010

Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé



II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu.

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

[Poema de Hilda Hilst, musicado por Zeca Baleiro, cantado por Veronica Sabino]

sábado, outubro 09, 2010

quarta-feira, outubro 06, 2010

"O que é o poema? Ele é uma flor que não morre. É uma flor que não murcha. Uma flor que não tem perfume e que desabrocha em alguma parte alguma da vida."

Ferreira Gullar

[Revista BRAVO! Outubro/2010, em matéria assinada por João Barile]

terça-feira, outubro 05, 2010

PORTRAIT

eu ramones por jô bilac [05.10.2010 - berlim]

JORNAL DE SERVIÇO




Leitura em diagonal das páginas amarelas

Jornal de Serviço

Adriana Calcanhotto
Composição: Carlos Drummond de Andrade

I
Máquinas de lavar
Máquinas de lixar
Máquinas de furar
Máquinas de curvar
Máquinas de dobrar
Máquinas de engarrafar
Máquinas de empacotar
Máquinas de ensacar
Máquinas de assar
Máquinas de faturamento

II
Champanha por atacado
Artigos orientais
Institutos de beleza
Metais preciosos
Peleterias
Salões para banquetes e festas
Condimentos e molhos
Botões a varejo
Roupas de aluguel
Tântalo

III
Panelas de pressão
Rolos compressores
Sistemas de segurança
Vigilância noturna
Vigilância industrial
Interruptores de circuito
Iscas
Encanadores
Alambrados
Supressão de ruídos

IV
Doenças da pele
Doenças do sangue
Doenças do sexo
Doenças vasculares
Doenças das senhoras
Doenças tropicais
Câncer
Doenças da velhice
Empresas funerárias
Coletores de resíduos

V
Papéis transparentes
Vidro fosco
Gelatina copiativa
Cursinhos
Amortecedores
Resfriamento de ar
Retificadores elétricos
Tesouras mecânicas
Ar comprimido
Cupim

VI
Mourões para cerca
Mudanças de pianos
Relógios de igreja
Borboletas de passagem
Cata-ventos
Cintas abdominais
Produtos de porco
Peles cruas
Peixes ornamentais
Decalcomania

VII
Peritos em exame de documentos
Peritos em imposto de renda
Preparação de papéis de casamento
Representantes de papel e papelão
Detetives particulares
Tira-manchas
Limpa-fossas
Fogos de artifício
Sucos especiais
Ioga

VIII
Anéis de carvão
Anéis de formatura
Purpurina
Cogumelos
Extinção de pêlos
Presentes por atacado
Lantejoulas
Sereias
Souvenirs
Soda cáustica

IX
Retificação de eixos
Varreduras mecânicas
Expurgo de ambientes
Revólver para pintura
Pintores a pistola
Cimento armado
Guinchos
Intérpretes
Refugos
Sebo

sexta-feira, outubro 01, 2010

RIO-HAITI,CIDADE ATRAVESSA


a antologia "brasil-haiti" vai ser lançada nesta sexta-feira no 'cidade atravessa', na livraria da travessa do centro, das 17h30 às 20h. neste livro está meu conto 'o dia em que parei de fumar'.

no evento, leituras de roberto muggiati, simone magno, felipe pena, ronaldo ferrito, talles machado horta, henrique rodrigues, angela dutra-menezes e lúcia bettencourt. além de entrevista com geraldo carneiro e fausto fawcett.