sábado, fevereiro 06, 2010

SEBOS, MARES, DIÁRIOS

Encontrei meu livro num sebo. É uma sensação estranha, ainda não sei explicar. Não fiquei triste, não é um sebo qualquer, é o Berinjela – um dos sebos mais charmosos do Rio, fica no subsolo de um prédio comercial no Centro, vizinho da livraria Leonardo da Vinci e do café Gioconda. Almoço por ali, toda semana, por causa do trabalho, sempre faço uma horinha no sebo e/ou na livraria. Não resisti, perguntei se meu Vinis Mofados ainda estava por lá. Sim, estava. Um exemplar de imprensa, não lido. Fiquei em dúvidas de comprá-lo: R$ 17. Nas livrarias ele custa R$ 25. Decidi deixá-lo ao acaso, à espera de um possível leitor.

Freqüento muitos sebos, meus prediletos são o Baratos da Ribeiro (Copacabana) e o Luzes da Cidade (Botafogo) e o Mar de Histórias (Copacabana), além do Berinjela. Sinto muito prazer em descobrir edições raras ou, simplesmente, esbarrar com um livro desconhecido. Outro dia, encontrei Como você se chama?, do escritor Raimundo Magalhães Jr., autor da biografia do poeta Casimiro de Abreu. Esse livro é incrível, trata-se de um longo ensaio sócio-psicológico de prenomes e cognomes, publicado em 1974. Esse exemplar foi pescado no Luzes da Cidade, enquanto eu esperava a sessão do filme Erva Daninha, de Alain Resnais. Assim que terminar a leitura do livro, vou escrever sobre os tais nomes. Drummond era aficionado pelo assunto, sabia?

Voltando ao Berinjela, garimpei o Diário Completo (José Olímpio Editora) do escritor Lúcio Cardoso, uma edição de 1970, que pertenceu à "Biblioteca de Esmeralda S. R. de Oliveira", adquirido no “Natal de 1971”. Há um lindo poema do Drummond, escrito quando Lúcio teve o derrame fatal, publicado no Correio da Manhã no dia 20 de setembro de 1968:

A LÚCIO CARDOSO, NA CASA DE SAÚDE
Carlos Drummond de Andrade

Entre visitas que perguntam
no corredor, por tua vida
de artista recolhido à noite
sensorial, entre amigos
que se inclinam preocupados
sobre a cisterna, e não distinguem
Teu reflexo brilhar no fundo,
Entre os mais próximos e diletos
- eu não estou, porém de longe
mais perto me sinto e decifro
melhor teu perfil na sombra,
e o perfil não só; tudo mais
que deu sentido a teu chamado
à rua dos homens: palavras
tramadas em papel, soando
em palco, problemas falantes,
movediços em preto-e-branco,
projeção em tela ou parede,
em cor quase som, mensagens
da mais subterrânea estação,
retratos espectrais do ser
para além da radiografia,
e um hálito de amor pedindo
espaços claros, praias de ouro
que se vão modelando em sonho
acordado, escrito, pintado.
Respiras, falas, comunicas-te
à revelia do corpo enfermo
em tudo que é sinal; contemplo
tua vida primeira e plena
a circular, transfigurada,
ó criador, entre vazios
sótão da casa abandonada

Se não fosse o livro da Esmeralda, talvez, eu não conhecesse o poema, que tem os sete últimos versos sublinhados. O que mais adoro nos livros usados são os comentários nas bordas das páginas, as frases sublinhadas, as dedicatórias... Meus livros são todos rabiscados, caneta ou lápis, não importa. Deixo a marca da leitura, assim me surpreendo nas releituras.

Quando entro num sebo, sempre me lembro do romance De cabeça Baixa (Guarda-Chuva), de Flávio Izhaki. Você gosta de sebo? Leia: "Na história contada por Flávio, o protagonista, Felipe Laranjeiras, encontra seu romance, Desencanto, num sebo em Curitiba – lugar escolhido de ‘exílio’ pelo personagem, após o fracasso do primeiro livro e de um relacionamento amoroso. As páginas do exemplar encontrado estão cheias de anotações críticas. Quem escreveu os comentários? Essa pergunta seduz o leitor e o caminha para uma narrativa angustiante e bem estruturada.", escrevi esse texto quando entrevistei Izhaki para o blog Click(In)Versos, em 2008.

Ao chegar em casa, com o diário de Lúcio nas mãos, postei a seguinte frase no Facebook:

"não admito vida longe do mar"

Moro em Copacabana, mas acho que mergulhei em tudo isso por saudade de Araruama, do passado. Uma de minhas lembranças mais felizes: o acampamento em Praia-Seca, com meu pai e meu avô, catando tatuí na areia. E, memória recente, a saudade da alegria efêmera dos fins de semana em Ilha Grande, deitado no píer.

Enfim, abri o diário de Lúcio Cardoso na página 12 e li o quarto parágrafo:

"o mar, a proximidade do mar torna as coisas mais limpas.", agosto de 1949.

O acaso?

Freqüentar sebos é resgatar passados, mesmo que não sejam nossos.


>>> Sobre Lúcio Cardoso:

Fragmentos do documentário Lúcio Cardoso, de Eliane Terra e Karla Holanda:




Homenagem a Lúcio Cardoso, em Curvelo, Minas Gerais:

2 comentários:

matheus disse...

interessante... se vc me der um (outro) exemplar do teu livro, eu dou um jeito de colocar ele numa estante da Shakespeare and Company... e tento tirar uma foto do feito. Isto é, só se vc quiser...

Marcio Debellian disse...

Acho lindo você encontrar seu livro no sebo. É deixar o que você lançou ao mundo circular, do lugar mais nobre ao mais simples, é permitir que ele faça o caminho do acaso.

E você em pessoa, num sebo, é algo especial. Você tem esta intuição, que como um ímã atrai o que deve te encontrar. Os livros te escolhem. Você gosta deles, sabe acariciá-los, deixá-los tomar um vento e circular. Sabe aproveitar cada palavra colocada para dentro, para soltar outras maiores ao mundo.

Gosto de escrever nos meus livros, sublinhá-los e colocar a data de início e fim da leitura. Isto me ajuda a contextualizar as emoções daquele período, quando pego o livro anos depois de já lido. E, secretamente, fica  esta sensação de algum legado. O seu toque, a sua palavra a partir daquela obra. E o encontro que esta intervenção pode ter com outra pessoa. Quem ler um livro que esteve em minhas mãos daqui a 100 anos, vai ler o autor mais algum fragmento meu.

Quem ler o Vinis Mofados daqui a 100 anos, vai ler o autor, mais alguns fragmentos meus.