Ferreira Gullar é homenageado na Casa do Saber
Ao lado Antonio Carlos Secchin e Adriana Calcanhotto, o poeta Ferreira Gullar participou da homenagem organizada pela Casa do Saber do Rio de Janeiro para celebrar seus 80 anos de vida.
Com o auditório lotado, o diretor da Casa do Saber, Armando Strozenberg, iniciou a celebração dando boas-vindas aos convidados e afirmando que Gullar o “ensinou que a vida sem arte não existe”. Em seguida, dedilhando o violão, Adriana Calcanhotto cantou o poema ‘Traduzir-se’, do livro Na Vertigem do Dia, de Gullar:
Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo // Uma parte de mim / é multidão: / outra parte estranheza / e solidão. // Uma parte de mim / pesa, pondera: / outra parte / delira. // Uma parte de mim / almoça e janta: / outra parte / se espanta. // Uma parte de mim / é permanente: / outra parte / se sabe de repente. // Uma parte de mim // é só vertigem: // outra parte, / linguagem. // Traduzir uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — /será arte?
Ao fim da música, coube ao poeta e acadêmico Antônio Carlos Secchin apresentar Ferreira Gullar e sua obra. O texto lido por Secchin foi escrito para ocasião da candidatura do poeta ao Prêmio Nobel de Literatura, em 2002.
“Antes fazer essa leitura, quero dizer que verifiquei no Google: Gullar tem milhões com referências ao seu nome. Um poeta brasileiro com essa quantidade enorme de referências não pode ser pouca coisa.”, disse Secchin.
Visivelmente emocionado, Ferreira Gullar leu seus poemas prediletos para a platéia. E, antes de cada leitura, Gullar falava sobre gênese dos poemas. As histórias, que resumiam fatos cotidianos, revelaram a grandeza do poeta diante de seus “espantos”.
“A poesia nasce do espanto. Uns poemas nascem da reflexão, outros do acontecimento.”, disse o poeta ao falar sobre o nascimento de um poema, que surgiu ao olhar uma foto aérea da sua cidade natal quando trabalhava como editor de uma revista de arquitetura no Rio.
Ao falar sobre o poema ‘A Casa’, escrito no Brasil e reescrito em Moscou, Gullar afirmou: “A vida é uma invenção”. Os versos foram reescritos porque, ao sair do país, o poeta achou que tivesse perdido o papel. Mas ao retornar para casa descobriu que o poema descansava na gaveta.
A criação de um belo poema, partindo ou não de uma realidade inventada, pode surgir de um simples cheiro de uma flor ou uma fruta:
“Desde criança como tangerina e o cheiro dela me persegue. O cheiro me remetia a algo escondido. Eu queria escrever um poema, mas não tinha o que escrever. Escrever o que? ‘A tangerina é bonita’? Não. Fui pesquisar, descobri que tangerina é a laranja da China. Até que o poema começou a nascer de uma frase: ‘Com raras exceções, os minerais não tem cheiro’. Percebi o nascimento e comecei a escrever. Temos de ficar atentos ao nascimento do poema”, afirma Gullar e completa:
“Sabe quando escrevi ‘Nasce o poema’? Eu estava numa entrevista quando uma repórter me perguntou: ‘Como nasce o poema’? Comecei a explicar e percebi que estava nascendo o poema. Terminei a entrevista e fui para casa escrever o poema que estava nascendo.”
Um dos momentos mais bonitos da leitura de Gullar foi com o poema ‘Meu Pai’: meu pai foi / ao Rio se tratar de / um câncer (que / o mataria) mas / perdeu os óculos / na viagem // quando lhe levei / os óculos novos / comprados na Ótica / Fluminense ele / examinou o estojo com / o nome da loja dobrou / a nota de compra guardou-a / no bolso e falou: // quero ver / agora qual é o / sacana que vai dizer / que eu nunca estive / no Rio de Janeiro.
Ao anunciar “o último poema com historinha”, Gullar relembrou em versos o artista plástico Iberê Camargo. O poeta ficou amigo de Iberê após a tragédia que ocorreu nos anos 80: “O Iberê saiu para rua, à procura de uma loja de cartões natalinos, e quando parou numa esquina de Botafogo para assistir a discussão de um casal. O marido se irritou. Iberê sacou a arma e matou o homem.”
A pedido de Antonio Carlos Secchin, Gullar leu o famoso poema ‘Cantiga para não morrer’, mas antes brincou: “Mas a Claudia está na platéia”., referindo-se a companheira Claudia Ahimsa que assistia a cerimônia. O poema foi escrito para uma mulher que conheceu quando estava exilado na Rússia.
Seguindo a leitura, Adriana Calcanhotto cantou o poema, que musicou com o nome de ‘Me Leve’: Quando você for se embora, / moça branca como a neve, /me leve. / Se acaso você não possa / me carregar pela mão, /menina branca de neve, / me leve no coração. // Se no coração não possa / por acaso me levar, / moça de sonho e de neve, / me leve no seu lembrar. // E se aí também não possa / por tanta coisa que leve / já viva em seu pensamento, / menina branca de neve, / me leve no esquecimento.
Secchin perguntou a Calcanhotto: “Como você conheceu a poesia de Gullar?”
“Minha mãe é professora e dava aula de manhã, de tarde e de noite. Então, ela só descansava depois do almoço – no momento que eu tinha que lavar louça. Ou seja, eu tinha que lavar louça sem fazer barulho. Desenvolvi uma técnica: ligava o rádio, baixinho. Assim que conheci o Gullar, numa canção. E depois na televisão, ele dizia loucuras. Gullar mudou minha vida.”
E, depois da conversa, Adriana cantou ‘Um gato chamado gatinho’, poema de Gullar, musicado para o show Adriana Partimpim. “O poeta é autor de literatura infanto-juvenil, mas quando lida com as crianças fala dos bichos. Drummond com os elefantes, Cecília com as borboletas e Gullar com os gatos, bichos domésticos.”, afirmou Secchin.
Há 11 anos sem publicar um livro de poemas, Ferreira Gullar leu poemas do livro inédito Em alguma parte alguma, que será publicado pela editora José Olympio.
“A poesia custa a nascer, não é que eu esteja trabalhando os poemas há 11 anos. Há poetas que conseguem trabalhar um tema, mas eu não sigo esse caminho. Como tudo é inventado, o espanto é interpretado a partir da minha visão de vida. Uma parte do livro é sobre o mistério do mundo. A idéia de ordem e desordem está presente. Meu livro novo abre com um poema intitulado ‘Fica o não dito por dito’. Ou seja, o que tenho de dizer não está no livro.”, brinca o poeta antes de ler poemas inéditos.
Conduzindo o término do encontro, Secchin pediu que Gullar contasse a história do ‘Trenzinho Caipira’, poema feito a partir de ‘Bachianas No 2’ de Villa-Lobos.
“Demorei 10 anos para fazer esse poema. Essa era a música que eu ouvi numa viagem de trem com meu pai. Eu queria fazer o poema para ele. Mas só fiz o poema quando estava exilado, escrevendo O ‘Poema Sujo’. Deixei da máquina, ouvi o disco do Villa-Lobos que carregava comigo e escrevi o poema."
Simulando o som de um trem nos acordes da guitarra, Adriana Calcanhotto cantou o 'Trenzinho Caipira'. Gullar, muito emocionado, ouvia de olhos fechados e mãos entrelaçadas. A platéia aplaudiu finalizando o encontro. Gullar: “Um violão substitui uma orquestra”.
As homenagens não terminaram, Calcanhotto pediu para cantar uma música atual, celebrando o Gullar de hoje, 'Definição da moça' – letra feita a partir do poema que Gullar fez para a esposa Claudia Ahimsa.
Como defini-la / Quando está vestida / Se ela me desbunda / Como se despida? // Como defini-la / Quando está desnuda / Se ela é viagem / Como toda nuvem? // Como desnudá-la / Quando está vestida / Se está mais despida / Do que quando nua? // Como possui-la / Quando está desnuda / Se ela toda é chuva? / Se ela toda é vulva?
“Temos que aproveitar que a musa está na platéia”, disse Calcanhotto.
Armando Strozenberg encerra brindando com os convidados: “Vamos lançar aqui o movimento FGA: Ferreira Gullar na ABL!”
>> Assista à entrevista exclusiva com o poeta Ferreira Gullar no SaraivaConteúdo:
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