sexta-feira, abril 30, 2010

A URGÊNCIA DO INSTANTE

Por Leonardo Davino

Dentre as efemérides da celebração pelos 50 anos de Renato Russo, o livro “Como se não houvesse amanhã” – coletânea de contos inspirados nas canções da Legião Urbana, organizada por Henriques Rodrigues – é uma boa homenagem ao cantor e compositor.

Todos os vinte contistas são, assumida e sensivelmente, fãs banda que ainda hoje mantém aficionados. A angústia produtiva e a inadaptação ao mundo, que atravessavam as canções também direcionam as tentativas de traduções interssemióticas do livro. Mesmo que as canções sejam uma referência distante, ou que versos apareçam diluídos nos textos, a lição de Renato foi introjetada.

Desde “Será”, de Daniela Santi, que abre o livro com lente hitchcockiana e persegue o amadurecimento prematuro, através de dramas sem motivos aparentes, de uma jovem estudante, até “Sagrado coração”, de Maurício de Almeida, de teor confessional, há algo que mina, falta e jorra. Um remexer intenso e vazio nas caixas da memória.

O gozo erótico fica no plano escritural, pois a fisicalidade diegética está sempre fraturada. “Um corpo morto não goza”. Os sujeitos se paralisam diante dos convites e intimações da existência. Delírios, separações e sêmen no chão dão o tom.

A ausência de verdade, ou a proliferação exagerada delas, é uma das musas das canções da Legião Urbana. Buscar, dentro do sereno da madrugada, exaspera o querer do sujeito, como mostra o conto “Sereníssima”, de Ramon Mello. Há, aqui, um grito de alerta e a procura da palavra mais certa para dizer o indizível.Este conto, aliás, é uma “ode” à canção popular. Muitas tessituras sonoras se cruzam, como os caminhos cruzados das personagens. A cama é tatame, o fracasso é relativizado pela inscrição do desejo amoroso e os atos são desenhados sobre acordos íntimos desbotados. O sujeito, exasperado, canta o eterno retorno do fim.

Para o bem e para o mal, o desespero, a ansiedade (adolescente) e o enfado diante do mundo provocam as ranhuras doídas e insofismáveis das canções da Legião Urbana e, consequentemente, dos contos. As personagens sem nomes próprios adensam o desejo de atingir o inconsciente do ouvinte-leitor e a intimidade é, por vezes, conseguida.

“Como se não houvesse amanhã”, com as irregularidades que marcam qualquer coletânea, é uma boa amostra sintomática de uma geração cuja certeza passa pela sabedoria de que algo se quebrou e está se quebrando.

[Jornal da União - Paraíba]

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