segunda-feira, julho 12, 2010

MAIS PRA LÁ DO QUE PRA CÁ

Por Ronaldo Bressane (Brasil Econômico)



MAIS PRA LÁ DO QUE PRA CÁ

A publicação póstuma de Me Roubaram Uns Dias Contados ilumina a obra de Rodrigo de Souza Leão, que a vida toda lutou (mas também se divertiu) com a condição de esquizofrênico

Por Ronaldo Bressane (Brasil Econômico)

"Eu sou. Rodrigo é. Você é. Ela é. Temos distúrbio delirante. Mania de grandeza. Esquizofrenia. Psicose. Neurastenia. Bipolaridade. Somos um exército de loucos. Sou um louco lúcido. Não dá ibope ser assim." Deste modo o carioca Rodrigo de Souza Leão condensava as muitas faces de sua obra: registro autobiográfico, a condição de esquizofrênico, a multiplicidade de vozes e certa desconfiança de que, por se situar na fronteira entre ficção e confissão, autodomínio e descontrole, nunca seria levado a sério. O autor do recém-lançado Me Roubaram Uns Dias Contados (Record) brincava que "depois que morre, todo escritor vira Ana Cristina Cesar". Aconteceu com ele: pouco lido em vida, publica o primeiro romance, Todos os Cachorros são Azuis (7Letras), finalista do Prêmio Portugal Telecom 2008, também foi reeditado. Será que, como autores que transitam entre o delírio e o suicídio - uma das possíveis causas da morte, por ataque cardíaco, foi a excessiva automedicação -, Rodrigo vai virar fetiche? "Essa é a minha preocupação", diz Ramon Mello, poeta que organizou o material inédito deixado por RSL. "A imprensa comenta muito o aspecto biográfico do autor, mas o que interessa é sua arte. Rodrigo sofria de esquizofrenia e sua produção refletia esse universo. No entanto, ele era um poeta que já escrevia antes do primeiro surto; é um escritor que mergulhou em seu inconsciente para trazer para o papel personagens ricos, que têm muito a dizer".

Que personagens? Weimar, um sexólatra que tem dez telefones em casa, para participar de diversos encontros amorosos ao mesmo tempo - sem contar a internet. Onanista de mão cheia, Weimar vive mais no mundo virtual, através do telefone e do computador, que presencialmente (agora observe as pessoas em volta e pense se isso é mesmo loucura). Enquanto desdobra-se entre as ninfomaníacas Mental e Vegetal, Weimar se irrita com a rotina e desconta a fúria em Rodrigo, autor do livro de que é personagem. Logo surgem os amigos imaginários Gregor e Joseph, o Sósia e outro narrador, o Van Gogh Brasileiro, cujo filho foi sequestrado por ETs e levado para o planeta Rock Hudson. Nesta polifonia de voz única, colagem de textos na primeira e na terceira pessoa, versos pessoais e letras de rock do s anos 80, indo do humor ao horror de 0 a 100 Km/h, como se brincasse de pega-pega consigo mesmo, a narrativa entra num ritmo... alucinante.

"Ninguém se conhece tanto a ponto de abrir a porta para um estranho sem saber se o estranho é ele mesmo." Na peculiar mistura de singelo surrealismo, lisa ironia e excruciante melancolia, em versos de fatura lógica, rimas simples e musicalidade imediata, o carioca RSL era uma lenda. Escritor incansável na rede - onde estava desde 1996, publicando o e-zine Balacobaco -, multiplicou-se por 10 e-books, artigos, entrevistas e participações em vários sites. Era uma lenda também por falar sem medo nem esperança da esquizofrenia, que o mantinha recolhido em casa. Em seu único livro de poesia publicado, Caga-Regras, poemas como 'Caixa de fósforos' falam do paradoxo de viver do outro lado da tela: "Eu não saio pra ver a vida?/Eu vivo ávido de vida?/A vida está aqui dentro/Tão dentro que estou morto?/Pronto pra pegar fogo;" Os transtornos mentais , que o levaram à internação em manicômio (tema de Todos os Cachorros são Azuis), e a luta por destrinchar os eventos criados pelo inconstante convívio entre a "normalidade" social e a realidade de uma mente em parafuso, relacionam o poeta numa linguagem rara. O cânone desta escrita de autobiográfica investigação psicopatológica alinha do Lima Barreto de O Cemitério dos Vivos à Maura Lopes Cançado de Hospício é Deus, passando pelo Renato Pompeu de Quatro-Olhos, o Carlos Sussekind de Armadilha para Lamartine, o José Agrippino de Paula de Lugar Público e o Lourenço Mutarelli de Arte de Produzir Efeito Sem Causa. Ficções desalinhadas na crítica acaddêmica, que ainda nos deve um estudo sério sobre a intersecção arte-loucura-biografia na literatura brasileira. Sério, mas, por favor, sem perder o humor - como pedia Rodrigo de Souza Leão, especialista em se equilibrar do lado de cá e do lado de lá.

Um comentário:

29 disse...

Gostoso esse seu blog!