terça-feira, outubro 12, 2010

DIZEM QUE SOU LOUCO




Me roubaram uns dias contados (Record, 2010), Rodrigo de Souza Leão

Na passagem dos dias

O livro póstumo de Rodrigo de Souza Leão (1965/2009), “Me roubaram uns dias contados” é um romance com muitos personagens e um só, o próprio autor. Ele costura a narrativa ficcional com situações de seu cotidiano e outras referências ao mundo real. Vida e ficção quase não se distinguem.

Trata-se do quarto livro de Rodrigo de Souza Leão, que também era músico e poeta. O segundo livro, a novela “Todos os cachorros são azuis” (7 Letras, 2008) foi produzido com incentivo do Programa Petrobrás Cultural e um dos 50 finalistas do Prêmio Portugal Telecom. A atual produção faz parte do projeto da Editora Record de edição da obra inédita de Rodrigo. A organização do acervo está a cargo do escritor Ramon Mello.

O autor sofreu um surto psicótico que o levou a aposentadoria precoce aos 23 anos. Desenvolveu o que popularmente se chama síndrome do pânico e ficou sem sair de casa por vinte anos. A loucura é o principal tema de sua obra.

Pouco antes de sua morte, Rodrigo de Souza Leão começou a sair para freqüentar aulas de pintura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Estava se destacando e sendo incentivado pelo professor e artista plástico João Magalhães, mencionado na nota de abertura do livro. A capa é um dos quadros de Rodrigo. Além destas referências diretas, o livro faz menção ao mergulho nas artes plásticas pelo autor através do personagem “Van Gogh brasileiro”, que não tinha uma orelha, pintou uma série de quarenta quadros em curto espaço de tempo, ganhou o prêmio Nobel da paz e era atazanado por um sósia. Paralelamente, ficou grávido de um extraterrestre e deu a luz a um híbrido que nunca chegou a ver.

A narrativa de Rodrigo aparenta ser totalmente fragmentada, mas não é. Ainda que crie e abandone personagens, divague entre considerações sobre a escrita, vida, loucura, juventude , frustração e dirija-se diretamente ao leitor para confessar que está ali enchendo lingüiça, faz de modo que a narrativa não se perca.

Vários personagens surgem, situações absurdas ocorrem e o leitor as perpassa como quem entra numa enorme construção cheia de cômodos e escadas, abrindo e fechando portas. O que se fragmenta são as diversas histórias, não a narrativa. O autor começa uma para logo perder o fio e iniciar uma outra. Diz que está tentando fazer um romance e que talvez não consiga. No entanto, o texto acaba sendo uma ficção sobre um escritor que tenta escrever um romance e por sofrer abalos psíquicos e “não ter o talento de Proust” não consegue terminar a história que estaria desenvolvendo. E cria outra e mais outra. Surge daí um personagem-narrador, elo de ligação entre as câmaras de suas histórias, ele mesmo transmudando-se em uma série de personagens, porém sempre reconhecível.

Dando ritmo a narrativa com uma freqüência que dá a impressão mesmo de ter sido calculada, são citados trechos de grandes sucessos da música brasileira, facilmente reconhecíveis pela notoriedade. Isso cria um elo com o imaginário do leitor que já tem onde se segurar durante as inúmeras mudanças no texto. A primeira vista aparentam ser fragmentações ou quebras no discurso. Uma leitura mais atenta percebe que não há quebra real e sim passagens sutis, quase imperceptíveis. Podemos encarar estas passagens como portas que ligam uma história a outra, ou transmutações de uma história em outra. O texto possibilita várias leituras.

O autor cita seu primeiro livro em prosa. Amarra sua vida literária dando coerência ao novo trabalho. A voz é a mesma com a diferença de que "Todos os cachorros são azuis" possuía nitidamente começo, meio, fim e apenas uma trama, constituindo-se numa novela. Em "Me roubaram uns dias contados" há várias tramas, situações de conflito e resolução, que ainda que não sejam escritas de forma tradicional, conseguem oferecer a estrutura de um romance tal qual conhecemos.

Outro dado importante na literatura de Rodrigo de Souza Leão reside no fato de que ele aproveita que o leitor de prosa esteja ali para que leia prosa poética ou poemas disfarçados de prosa: “A maioria das pessoas não tem assunto. Eu tenho assunto, mas prefiro ficar calado. Ninguém acredita no que falo. Não sei por que estou falando agora. Falo porque não sou ninguém e não me incomoda ser nada.” Neste aspecto, nos lembra Clarice Lispector que, apesar de não ser poeta, trazia em seus textos uma enorme carga poética e filosófica. Fazia isso através da boca de seus personagens. Entrava em contato direto com o leitor, remetendo-o a questionamentos profundos sobre a linguagem e a existência.

O mesmo ocorre, guardadas as devidas proporções, com o texto de Rodrigo de Souza Leão. Em alguns momentos, a narrativa é apenas um pretexto, uma armadilha, para pegar o leitor que se defronta com poesia. Construções lógicas, alumbramentos do autor são arremessados sem aviso prévio, nas brechas de suas “histórias”, nas pretensas quebras do discurso. Mas se a semelhança com Clarice Lispector se apresenta através da prosa poética na narrativa, o humor e o universo do absurdo de Rodrigo o atira para longe de dela. Não há momentos solenes na narrativa de Rodrigo. Se por acaso alguma frase esbarra neste terreno, é por ínfimos momentos que logo se revezam com deboche e ironia.

Conta-se que o autor, queria escrever um livro de seiscentas páginas, para que ele pudesse ficar em pé sozinho, apoiado em sua base. Não escreveu seiscentas páginas, mas produziu uma arquitetura capaz de dar ao texto a estrutura necessária para se manter de pé até o fim, como um bloco coeso.

[Elaine Pauvolid - JB digital, dia 9 de outubro de 2010]

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