domingo, abril 17, 2011

GLAUCO MATTOSO, 'POETA DA CRUELDADE'


O anti-herói cego, “pornosiano, barrockista, deshumanista, anarchomasochista, pós-maldito”, como gosta de se rotular, completa 60 anos com lançamentos e relançamentos por diferentes editoras

Por Ramon Mello
Foto Claudio Cammarota

Autor de uma “poesia viril”, o poeta paulistano Glauco Mattoso completa 60 anos no dia 29 de junho deste ano, produzindo literatura intensamente. Para quem desconhece sua história, seu nome é uma alusão direta ao poeta satírico Gregório de Matos (1633–1695), o Boca do Inferno, além de trocadilho com a doença congênita – o glaucoma – que lhe privou progressivamente da visão. Pedro José Ferreira da Silva é o seu nome de batismo.

Mestre do pastiche literário, já perverteu mais de quatro mil sonetos, série iniciada em 1999, superando o poeta italiano Giuseppe Belli (1791-1863), recordista no gênero, que teria composto 2.279 sonetos em uma obra produzida entre 1830 e 1839. Desde a cegueira total em 1995 – trajetória que lembra a do escritor argentino Jorge Luis Borges –, Mattoso escolheu o soneto como modo de organizar seus escritos. A forma fixa de poema (14 versos compostos por dois quartetos e dois tercetos) auxilia o poeta cego a escrever mentalmente os poemas, sem abandonar a transgressão dos temas.

Autor do romance autobiográfico Manual do podólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés (All Books/ Casa do Psicólogo), Glauco Mattoso cultiva a fama de escritor maldito com suas preferências excêntricas. Ele é obcecado por pés masculinos, fetiche retratado tanto na prosa quanto na poesia. O pé e a cegueira são temas centrais de muitos de seus livros. Através da perversão sexual, o autor denuncia as perversidades sociopolíticas. Sua temática, que funciona como alicerce do próprio soneto, abusa da pornografia e escatologia, assim como os versos do poeta fescenino do século 17, cuja referência é explícita.

Mattoso cursou biblioteconomia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e letras vernáculas na USP, sem concluir. Além dos sonetos, já escreveu dezenas de contos, dois romances, centenas de crônicas, vários ensaios, um dicionário de palavrões, um tratado de versificação, publicou dezenas de volumes de poesia e editou um fanzine durante quatro anos. “Mas o soneto é meu maior vício, e só como vício posso definir esse gênero que me serve de válvula para desabafar a revolta contra a cegueira. Parafraseando o Zé Dirceu, eu não posso, não quero e não devo deixar de sonetar...”, ironiza.

Prestes a se tornar sexagenário, o poeta relembra que o interesse pelos sonetos é anterior a cegueira: “Eu já admirava os clássicos pelo rigor com que eram compostos, especialmente um tipo de poema tão difícil como o soneto. Mas, enquanto ainda enxergava, minhas influências eram mais iconoclastas (modernismo, concretismo, tropicalismo e marginalismo), por isso raramente sonetei naquela fase. Quando fiquei cego, percebi que minha capacidade mnemônica era magicamente imensa. Passei, entre a insônia e o pesadelo, a compor freneticamente, salvando na memória os versos que, graças à rima e à métrica, mantinham-se intactos até que eu os digitasse no computador falante. Atribuo tal capacidade, também, a alguma ‘assistência espiritual’, já que me considero um bruxo...”, relata Glauco Mattoso, que trabalha diariamente com um programa de leitura de voz no computador (desenvolvido pela UFRJ), sem perder as subversões que pratica na sua escrita desde a época da poesia marginal nos anos 1970.

Celebração

Em comemoração ao 60º aniversário do “poeta da crueldade”, diversos lançamentos estão programados. A editora Annablume lançará uma caixa com 10 livros, sete já editados e três inéditos: O poeta da crueldade, O poeta pornosiano e Poemídia e sonetrilha. A Annablume detém os direitos de publicação da série de poesias Mattosiana pelo selo literário Demônio Negro e a obra Contos hediondos (2009). É também responsável pela obra ensaística de Mattoso, da qual publicaram, na Coleção Língua, Literatura e Discurso, o Tratado de versificação (2010) – acordo onde o poeta propõe “revisitar as trilhas da versificação e revalorizar o conceito da ‘musa’ no aspecto ‘musical’ do poema”. O selo Tordesilhas também adquiriu toda a prosa escrita do autor, repleta de ironia e humor negro, longe de tudo que se pode classificar como literatura bem comportada. Além de publicar os romances A planta da donzela (Lamparina, 2005) e Manual do podólatra amador, a editora prepara uma nova versão da coletânea Contos hediondos, incluindo textos inéditos. A prosa mattosiana, irreverente como a poesia, é muito bem elaborada, o que elimina a proximidade com a simples pornografia.

Ao longo dos anos, o Conde Glauco Mattoso – como o nomeou o poeta Roberto Piva (1937–2010) – passou a publicar em diversas editoras, o que dificulta a concentração de sua obra em um único selo. A produção poética inclui 35 títulos fora de catálogo ou com contrato para vencer, sem contar os poemas publicados na internet. O editor Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial, que o conhece desde os anos 1970, o considera “um grande escritor, polêmico e alternativo, implacável diante do mercado, para o qual não faz nenhuma concessão”.

Fase Visual e Face Cega

As referências de Glauco Mattoso passam de Camões a Augusto de Campos, de Gregório de Matos a Luiz Delfino, de Sade a Cego Aderaldo, de Olavo Bilac a Millôr Fernandes. Não é à toa que Caetano Veloso citou o poeta na música “Língua”, do disco Velô, de 1984. O cantor baiano o conheceu através do concretista Augusto de Campos, na época em que Glauco assinava o Jornal Dobrabil (trocadilho com o Jornal do Brasil

e com o formato dobrável), um fanzine poético-panfletário feito com uma datilografia minuciosa que imitava as famílias tipográficas utilizadas pelos grandes jornais.

Mattoso também é conhecido pela sua intensa colaboração na imprensa alternativa na década de 1980, como Tralha, Mil Perigos, Som Três, Top Rock, Status, Around e Chiclete com Banana – esta última criada em parceria com o cartunista Angeli, publicada pela Circo Editora. Nos últimos anos, o poeta tem escrito para o site de literatura Cronópios [www.cronopios.com.br] e colaborado para revistas impressas, como a Caros Amigos.

O crítico e ensaísta carioca Pedro Ulysses Campos já dividiu a poesia de Glauco Mattoso em duas fases: “a primeira seria a Fase Visual (1970–1980), enquanto o poeta praticava um experimentalismo paródico de diversas tendências contemporâneas; e a segunda a Fase Cega (1999 até hoje), quando o autor, já privado da visão, abandona os processos artesanais, tais como o concretismo datilográfico, e passa a compor sonetos e glosas”. “Spik (sic) Tupinik” (1977), um dos sonetos mais famosos dá a dimensão da relevância da poesia de Glauco Mattoso: Rebel without a cause, vômito do mito / da nova nova nova nova geração, / cuspo no prato e janto junto com palmito /o baioque (o forrock, o rockixe), o rockão. / Receito a seita de quem samba e roquenrola: / Babo, Bob, pop, pipoca, cornflake; / take a cocktail de coco com cocacola, / de whisky e estricnina make a milkshake. / Tem híbridos morfemas a língua que falo, / meio nega-bacana, chiquita-maluca; / no rolo embananado me embolo, me embalo, / soluço - hic - e desligo - clic - a cuca. // Sou luxo, chulo e chic, caçula e cacique. / I am a tupinik, eu falo em tupinik.

A musicalidade de seus versos pode ser conferida no CD Melopéia (Rotten Records), nas vozes da MPB como Itamar Assumpção, Humberto Gessinger, Inocentes, Billy Brothers, Laranja Mecânica e Arnaldo Antunes. Trata-se de uma antologia de seus sonetos misturada a diferentes ritmos: samba-enredo, techno-samba, samba-canção, punk-rock e bluejazz. O álbum, que tem a capa assinada por Lourenço Mutarelli (uma paródia da capa do disco Tropicália, 1967) está esgotado.

Glauco Mattoso fabrica a própria lenda com a sua obra e sua história: cego, gay, podólotra e masoquista. Sempre que se escreve sobre o poeta, há uma tentativa de definilo: marginal, punk, pós-concreto, maldito... “Todos esses rótulos estão corretos. Eu próprio me colei mais alguns: pornosiano, barrockista, deshumanista, anarchomasochista, entre outros. Mas, para melhor sintetizar todos eles, pode me chamar de pós-maldito...”, explica o ícone do “malditismo literário” no Brasil.

E agora, poeta, como é completar 60 anos? “Acho que é como estar prestes a completar 18 quando a gente é menor de idade, ou 100 quando a gente ainda tem 99. Parece que subimos um degrau e só podemos olhar para frente, sob risco de tropeçarmos e cairmos. A partir deste ano, posso ser chamado de ‘edoso’ e tenho que me vacinar contra a gripe. Minhas fantasias masturbatórias, entretanto, prosseguem a todo vapor...”, revela o poeta maldito que se tornou um clássico, um dos melhores sonetistas do Brasil.

[publicado originalmente na revista saraivacontúedo, abril de 2011]

Um comentário:

Anônimo disse...

No great loss without some small gain.