quinta-feira, maio 05, 2011

A POESIA QUE NOS UNE

Por Júlio Diniz

Assisti inúmeras vezes ao show “Brasileirinho” de Maria Bethânia e tantas outras revi em casa o DVD do espetáculo com a imagem de Ferreira Gullar lendo o poema “O descobrimento” de Mário de Andrade, com a Bachiana no 5 de Villa-Lobos ao fundo, interpretada pelo grupo Uakti. De repente surgia a voz mestra da intérprete cantando “Salva as folhas”, de Gerônimo Santanna e Ildásio Tavares. O ano era 2004 e as águas de março fechavam o verão.

O episódio chocante ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no último dia 7, nos faz pensar no que queremos na área da educação e o que planejamos para as nossas crianças. A escola não pode ser o lugar do abandono, da violência, da insensibilidade. Independente dos motivos que levaram aquele ex-aluno a provocar um massacre, sabemos que todos nós somos vítimas e algozes em uma sociedade que precisa urgentemente se reinventar. No mesmo dia, a presidente Dilma Roussef lamentou o ocorrido e pediu um minuto de silêncio para “homenagear esses brasileirinhos que foram retirados tão cedo da vida”. Ávidos por liberdade, sedentos por alegria, estudavam numa escola que foi batizada com o nome de um poeta brasileiro modernista, Tasso da Silveira. Esses brasileirinhos são também os meninos e meninas que trabalham com poesia e música popular em tantas outras escolas do país e têm o direito aos bens culturais que aspiram.

O CD “Brasileirinho” de Bethânia serviu de inspiração para Vânia Corrêa Pinto, professora de filosofia do Colégio Estadual Vicente Jannuzzi, uma escola pública localizada na zona oeste do Rio de Janeiro, desenvolver um belo trabalho com os seus alunos. Os estudantes tiveram a oportunidade de, através de canções e textos de nossa literatura presentes no repertório do CD, ler com mais paixão e rigor crítico os caminhos e descaminhos do Brasil. A proposta da professora atingiu o peito e a cabeça dos seus alunos. O que se viu naquela escola era o que queremos ver em todas as escolas deste país: ensino dinâmico, trocas interculturais, debates constantes e comoção diante da vida. A literatura e a nossa música popular são armas poderosas no processo de aprendizagem, formação do cidadão e transformação da própria realidade sociocultural. São mais poderosas que as balas que querem nos atingir diariamente. O ano era 2005 e as águas de março fechavam o verão.

O que nos une, além da antropofagia, é a fome. E a maneira de dizê-la é a língua, inculta e bela, roçando a lusitana língua de Camões, tocando a rosa do Rosa em constante fabricação, inventando o cotidiano das imagens e das canções, como bem o disse Caetano. O latim em pó que se espalhou pelos continentes a partir do mar português, amalgamou-se com outras vozes em África, lutou por sua sobrevivência na Ásia e dançou miscigenado na alegoria do Sambóbromo Brasil. O latim em pó, diluído e recomposto, nos assegura a permanência de uma memória multicultural. A língua resiste ao esquecimento. A língua é a tradução da tradição que nos faz andar assim, meio torto, meio enviesado, meio de banda.

Os modos de ser brasileiro confundem-se com os jeitos do Brasil. A precisão das imagens fundacionais de uma nação, certeza e garantia civilizatórias de vários povos, para nós é borrão, pincelada impressionista, rasura no texto, remendo na roupa. O Brasil é uma invenção de deserdados.

O episódio trágico envolvendo alunos da Escola Municipal Tasso da Silveira me faz refletir, como educador e cidadão, sobre o lugar delicado, estratégico que a poesia ocupa em nossas vidas. Não se trata de uma discussão inocente ou marcada por uma visão romântica de mundo. Não se trata de transformar a arte em terapia ocupacional ou ferramenta pedagógica. Não se trata de achar que a poesia nos protege e nos salva da violência cotidiana. Trata-se da confirmação de que o projeto “Brasileirinho” da professora Vânia, centrado no cd de Bethânia, continua provocando nos alunos de uma escola localizada também na zona oeste da cidade a sensação de compartilhar com outros o sentimento do mundo. Diante da barbárie, a poesia é possível, sim. Diante da intolerância, a poesia é necessária, sim.

Há algumas semanas iniciou-se um processo de demonização da cantora Maria Bethânia. Acusaram-na levianamente de ter se apoderado de forma pouco ética de dinheiro público. Por detrás de toda a cortina de fumaça que se levantou, está a ausência irresponsável dos atores culturais num debate necessário sobre financiamentos, fundos, patrocínio e direitos autorais entre outros temas. O discurso dos rancorosos e dos oportunistas centrava-se em Bethânia para desviar a discussão do seu alvo. Tentaram usar a cantora como bode expiatório. E a polêmica girou em torno do projeto de um site sobre poesia idealizado por Hermano Vianna e Andrucha Waddington em parceria com a intérprete.

Nada como a possibilidade de uma discussão necessária num momento descontextualizado. Inúmeros artistas e criadores entraram no debate. Gostaria agora de falar como professor, educador, cidadão, consumidor de bens culturais. Se os valores do projeto divulgados são considerados justos por uns e abusivos por outros, esta é uma questão importante, mas agora não é a essencial. O que se combatia, com doses de intolerância e rancor, era um projeto que privilegiava a poesia num site de acesso gratuito.

O projeto da professora Vânia Corrêa Pinto, como de tantos outros professores em milhares de escolas brasileiras, quer o mesmo que Bethânia. Quer comida, poesia, bebida, diversão e balé! Quer poder levar para a escola pública a força da palavra com plasticidade e delicadeza. Quer poder respeitar o trabalho de quem se dedica com profissionalismo e ética ao que faz. Não quer ficar refém da mediocridade, intolerância, inveja e violência reinantes num país de pequenos e grandes assassinatos.

Definitivamente “o leito do rio fartou-se/e inundou de água doce/a amargura do mar”, como nos ensina Chico Buarque. As águas de um abril despedaçado disfarçam o fim triste do verão. O outono, como o mundo, precisa de poesia. Cada vez mais.

Júlio Diniz é professor de literatura e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio

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