domingo, julho 24, 2011

MERGULHO NA MENTE ESQUIZOFRÊNICA

A palavra literária e a cena dramática se encontram em “Todos Os Cachorros São Azuis”, espetáculo dirigido por Michel Bercovitch e baseado no livro homônimo de Rodrigo de Souza Leão, escritor que faleceu aos 43 anos em decorrência da esquizofrenia. Leia a crítica.

Andrea Carvalho Stark [Caderno Teatral , Site - 19/07/2011]

No palco, grades móveis dividem o espaço. Vemos cubículos por onde cinco pessoas em posição fetal, e vestidas com cores neutras, se esgueiram, movimentam, falam de si e do que estão vivendo ali. Estão dopados, mas estão conscientes, mais do que nunca. Representam um só personagem em momentos diversos. Tudo é contido e controlado, mas há arroubos que vão crescendo e se fragmentando, como uma pessoa que tenta direcionar suas próprias forças entre idas e vindas, fracassos e recomeços. Assim poderíamos resumir “Todos Os Cachorros São Azuis”, peça baseada no livro homônimo do poeta e romancista carioca Rodrigo de Souza Leão, falecido em 2009, aos 43 anos, em uma clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro.

Resumir, no entanto, não significa despistar a experiência teatral que é apresentada nesse espetáculo a partir do referido livro, com o qual o autor concorreu como finalista, em 2009, ao Prêmio Portugal Telecom – uma das maiores láureas da Literatura lusófona. A obra é uma narrativa autobiográfica fragmentada, sobre impasses, vivências e soluções íntimas de um esquizofrênico em busca de saídas e de formas para sobreviver ao próprio caos. Um texto de extrema criatividade e sensível beleza que nos faz repensar a loucura como criação artística, especialmente naquela arte que tem a palavra como matéria-prima.

Literatura e loucura

Souza Leão viveu sua breve vida entre internações, leituras e literaturas e em sua obra, como a apresentada pelo espetáculo, onde encontramos claras citações aos poetas franceses Rimbaud e Baudelaire, ao português Fernando Pessoa e ao brasileiro Manuel Bandeira. Escrever para o autor era uma forma de se ater, como controle, ligação e completude de sua mente fragmentada por diversos estados provocados pela esquizofrenia. Seu texto reflete essa condição pessoal : é um autor que se escreveu e tentou domar à força os seus próprios leões. Não precisou se preocupar em criar ficções, pois sua própria vida já lhe era inacreditável o suficiente. Souza Leão é plateia e ator, é sujeito e objeto e levou todos esses estados para seus escritos, muitos ainda inéditos.

O poeta e ator Ramon Mello é o responsável pela publicação da obra do colega, e se empenha em divulgá-lo com muita generosidade e dedicação. É dele, também, a idealização desta montagem teatral à qual integra como intérprete.

Das páginas ao palco

O espetáculo não tem um texto escrito especialmente para o teatro ou para ser falado, mas há fortes traços de oralidade em tom de diário-desabafo. É certo que, encontrar o tom e a carpintaria dramática mais coerente foi um grande desafio para o elenco e toda equipe regida pelo diretor Michel Bercovitch.

Face a essa multiplicidade possível de caminhos que o texto literário aponta, o resultado é um espetáculo impactante que se utiliza com maestria dos vários recursos cênicos para contar o cotidiano das imagens e alucinações provocadas pelos seres que nascem dos fragmentos da realidade vivida pelo autor. Desse modo, a luz, o cenário, o movimento e a trilha sonora se relacionam para esse fim; compõem esse único personagem interpretado pelos cinco atores. São linguagens de um mesmo peso, específicos em uma função de delimitar e teatralizar o que foi escrito literariamente em tom confessional.

Sobre a dramaturgia coletiva – assinada pelo diretor, Ramon e Flávio Pardal (com colaboração de Manoela Sawitzki) – poderia haver alguns cortes um pouco maiores em função de se estabelecer um ritmo mais concentrado no final. Há alguns momentos em que pensamos chegar ao fim, mas depois outras situações nos são apresentadas, o que causa uma sensação dispersa quando há vários momentos que soam finalizadores, mas que não se concluem.

Todos são um azul

O elenco composto pelas atrizes Bruna Renha, Camila Rhodi, Natasha Corbelino e pelos atores Gabriel Pardal e Ramon Mello, demonstra homogeneidade nas atuações, mas mesmo assim, cada um tem a liberdade de criar propriamente uma interpretação que se juntam como em um coro harmonioso. Há certa uniformidade, pois cada um faz um mesmo personagem narrador, com poucos momentos em que o diálogo ou outros personagens se fazem presentes.

A direção de arte de Rui Cortez criou diversas grades móveis que são movimentadas em cena pelos próprios atores, criando diferentes espaços: é um muro que se sobre e se debruça, são as paredes de um cubículo de hospício, se expandem, fazendo o espaço e a própria personagem se expandirem nos momentos em que há o significado do espaço, do retorno e da liberdade presentes. Um efeito de movimento e marcações bem interessantes. A luz de Tomás Ribas e a trilha-sonora de Rafael Rocha dialogam com o personagem, como um eco de seu pensamento nos momentos de dor de liberdade, de retração e expansão.

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS , de Rodrigo de Souza Leão. Direção de Michel Bercovitch. Com Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon Mello. Teatro Maria Clara Machado. Sábado às 21h. Domingo, 20h.

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