terça-feira, agosto 30, 2011

"UMA FOGUEIRA NO HOSPÍCIO"


Priscila Fialho [ PACC - UFRJ - agosto/2011]

“Todos os cachorros são azuis”, que está em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, na Gávea, até o próximo fim de semana, é uma adaptação do romance homônimo de Rodrigo de Souza Leão. Rodrigo, além de jornalista, escritor e poeta era esquizofrênico. Daqueles brilhantes, que nos colocam frente a um paradoxo que talvez não devesse ser, com sua insanidade lúcida. Sua loucura tão preenchida de sentido e, por isso mesmo, perturbadora.

Rodrigo de Souza Leão morreu em 2009 e a peça é uma idealização do também poeta, ator e jornalista Ramon Mello, que além de amigo se tornou responsável pela obra do artista. Com a direção acertada e enxuta de Michel Bercovitch, o espetáculo narra trechos da vida de Souza Leão no hospício e cinco atores se revezam para dar vida aos pensamentos e alucinações do poeta. Bruna Renha, Camila Rodhi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon Mello estão muito bem nas suas versões de Rodrigo, e juntos conseguem uma atuação equilibrada e vigorosa sem encobrir as personalidades: próprias e do autor.
O cenário de Rui Cortez é simples e objetivo, composto apenas por uma lona no chão e grades sobre rodas que, carregadas pelos atores, dão vida aos movimentos de cena bem construídos e orquestrados por Paula Maracajá. Esse cenário também contribui para a sensação de angústia que vai aumentando na platéia a medida que os movimentos com as grades se tornam mais rápidos e frequentes. Da mesma forma, a luz de Tomas Ribas surge exaltando o branco ofuscante e característico de hospitais e hospícios, e colore o espaço enquanto ouvimos referências a Van Gogh, o amarelo, Haldol e os azuis, do cachorro e dos remédios.

“Todos os cachorros são azuis” nos instiga à reflexão sobre a linha sempre tênue entre lucidez e loucura, com momentos de tristeza e graça, como a morte do temível louco e o dia em que fizeram uma festa junina no hospício. O espetáculo nos brinda com expressões contundentes como “a violência é tão fascinante e a nossa vida tão normal” ou “mas eu sou frágil e delicado como qualquer sentimento de vida”, que tiradas do seu dia a dia no cubículo funcionam, para nós aqui de fora, como “merda jogada no ventilador da sanidade”. Em sua trajetória manicomial, Rodrigo contava com a companhia de Rimbaud e Baudelaire, sempre presentes em suas alucinações e cúmplices de seus feitos no hospício.

Sorte a nossa que Ramon Mello tenha conhecido Souza Leão e que tenha corajosamente levado sua obra adiante. Assim como o fotógrafo Marcos Prado fez o mundo descobrir Estamira e suas verdades, temos agora a chance de conhecer melhor o trabalho e a vida de alguém que foi tão criativo e brilhante. Ramon pretende ainda realizar uma exposição com quadros de Rodrigo Souza Leão (sim, ele também pintava), mas depende de ajuda para conseguir um patrocínio. É possível ter acesso a maiores informações no site dedicado a ele (www.rodrigodesouzaleao.com.br). É necessário que se divulgue iniciativas como essa que ressaltam a importância de artistas desconhecidos do grande público.

Talentoso e de uma lucidez claustrofóbica, Rodrigo de Souza Leão, o esquizofrênico, nos lembra que a loucura é um tema bastante pertinente e necessário nos tempos atuais em que a medicina, tão avançada em outras áreas, ainda faz uso de instrumentos arcaicos – como o choque elétrico – nos hospícios. O autor ainda descreve o tratamento desumano que lhes é dado em clínicas psiquiátricas, uma realidade que afeta diversas instituições públicas e privadas. Esse tratamento dado aos milhares de pacientes portadores de doenças mentais, já denunciado no filme de Marcos Prado e na morte recente e prematura de Estamira, volta a assombrar e a lembrar que vivemos uma esquizofrenia social, onde ninguém é livre, pois a liberdade não existe. Nos resta a arte, que se não salva, ao menos denuncia. Que assim seja, acugelê banzai!

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