quinta-feira, outubro 20, 2011

LANÇAMENTO GUERREIRA GUERRILHA

fotos: Leandro Collares







dia 18:




O que se odeia no índio, de Reynaldo Jardim

O que se odeia no índio
não é apenas o ocupado espaço.
o que se odeia no índio
é o puro animal que nele habita,
é a sua cor em bronze arquitetada.
A precisão com que a flecha voa
e abate a caça; o gesto largo
com que abraça o rio; o gosto de
afagar as penas e tecer o cocar;
O que se odeia no índio
é o andar sem ruído; a presteza
segura de cada movimento; a eugenia
nítida do corpo erguido
contra a luz do sol.
O que se odeia no índio é o sol.
A árvore se odeia no índio.
O rio se odeia no índio.
O corpo a corpo com a vida
se odeia no índio.
O que se odeia no índio
é a permanência da infância.

dia 19:









=> crítica do recital 'Bethânia e as Palavras', por Mauro Ferreira:

Reedição de livro de 1968 traz poesia valente de Bethânia de volta à cena

A reedição do (até então raríssimo) livro de poesia Maria Bethânia Guerreira Guerrilha - lançado às vésperas da promulgação do asfixiante Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968 - motivou Maria Bethânia a fazer no Teatro Sesc Ginástico, no Rio de Janeiro (RJ), duas apresentações do recital de poesia Bethânia e as Palavras para celebrar a obra do poeta e jornalista Reynaldo Jardim (1926 - 2011), autor do livro considerado subversivo e pornográfico pelo regime militar da época. Por conta da ocasião, Bethânia - vista em foto de Rodrigo Amaral na apresentação desta terça-feira, 18 de outubro de 2011 - incluiu no roteiro poema de Jardim, O Que se Odeia no Índio, escolhido ao acaso quando a intérprete abriu o livro que compila a obra do escritor, Sagradas Escrituras, conforme a artista contou em cena. Orgulhosa com a reedição, a intérprete teceu loas ao poeta ao longo da apresentação aberta com a exibição de vídeo com o trecho do curta-metragem Profana Via Sacra (de Alisson Sbrana) em que Jardim recorda a saga do livro, cuja primeira edição foi quase toda confiscada e destruída pelos órgãos repressores do Governo da época. Na sequência da abertura, o ator Elias Andreato entrou no palco para recitar trecho do longo poema do livro e somente então depois Bethânia, a senhora da cena, apareceu para fazer o espetáculo em que entrelaça música e poesia. No bis, a pedido de um espectador, Bethânia cantou Carcará (João do Vale e José Cândido), o tema que alçou voo alto pelos ceús do Brasil desde que foi abordado pela artista em 1965 no show Opinião, em interpretação tão marcante que inspirou Jardim a escrever o livro ora relançado pela Móbile Editorial sob a organização de Marcio Debelian e Ramon Mello. Em cartaz no Sesc Ginástico somente até 19 de outubro, Bethânia e as Palavras voltou à cena mais longo - com a adição de músicas como a guarânia Meu Primeiro Amor (Lejania),sucesso da dupla Cascatinha & Inhana, e Todo o Sentimento (Cristóvão Bastos e Chico Buarque) - porém com a mesma estrutura básica da primeira temporada do recital, iniciada em 2 de setembro de 2010 no Teatro Fashion Mall (clique aqui para ler a resenha da estreia e aqui para ver o roteiro), no mesmo Rio de Janeiro (RJ) para onde Bethânia trouxe de volta seu canto sagrado e suas palavras valentes para celebrar a poesia de Reynaldo Jardim.

Maria Bethânia recorre às palavras ternas da toada O Menino de Braçanã - lançada em 1954 pelo cantor pernambucano Luiz Vieira, parceiro do carioca Arnaldo Passos (1910 - 1964) na singela composição - para celebrar sua mãe, a centenária Dona Canô, ao fim do recital de música e poesia Bethânia e as Palavras. Como visto na foto de Rodrigo Amaral, é com a imagem de Claudionor Viana Telles Veloso - hoje com inacreditáveis 104 anos - projetada ao fundo do palco que Bethânia sai de cena após cantar a toada que narra a história do menino interiorano preocupado em voltar logo para casa para não afligir sua mãe. De volta ao Rio de Janeiro (RJ), onde fica em cartaz no Teatro Sesc Ginástico até 19 de outubro de 2011, o recital celebra nessa microtemporada carioca a reedição do (até então raríssimo) livro Maria Bethânia Guerreira Guerrilha (1968), do poeta e jornalista Reynaldo Jardim (1926 - 2011).


=> Crônica de Arnaldo Bloch, O Globo:

Antes de iniciar o recital da última terça, no Sesc-Ginástico — celebrando o relançamento da obra (1968) do recém- saudoso Reynaldo Jardim em sua homenagem — Bethânia falou dos tempos estranhos que vivemos. Não me recordo exatamente de suas palavras, mas era algo sobre a pressa de tudo fazer e a quase impossibilidade do silêncio.

Tempo no qual, disse Bethânia, dizer poesia (a palavra, o conceito, os versos) é tido quase como uma ofensa. Essa introdução, nas duas horas que se seguiram, voltou-me à mente a cada trinado de celular que insistia em perturbar aquele espaço de delicadeza. Ou, nas palavras de Fausto Fawcett, “pacto de delicadeza”.Contei dez, ao todo, apesar dos avisos antes de apagarem-se as luzes. Havia um toque de rock; o toque clássico da Nokia; abominações de todo tipo; e um simulacro de passarinhos. Na fila da frente, um cidadão tentava filmar o recital, refletindo a luz diabólica de sua telinha nos meus olhos. Tive que ser rude para que ele parasse de uma vez por todas. E ele não se conformou até o final. Coitado. Um doente. Devia estar internado.Na fila de trás, um facínora falava ao celular. Creiam. Falava. Tipos assim deveriam ser expulsos do teatro como um molestador de virgens é lançado de uma boate porta afora pelo leão de chácara. Jogado à rua para cheirar a sarjeta e acordar. Uma segunda chance.

Os trinados durante o recital, as tentativas de filmagem, as conversas paralelas, soavam como protestos contra a ofensa que Bethânia impunha: quem ousa dizer poesia está confrontando a nova ordem. Bethânia dizer poesia (ainda que num recital de poesia de Bethânia) é um acinte, um soco nas pernas que tremem de ansiedade pelo próximo torpedo, pelo e-mail com esporro do chefe, pelo resultado do futebol.

Bethânia, contudo, não chiou. Deixou os trinados irem e virem e serem sobrepujados e capturados pelas teias do seu dizer, até que o silêncio (entre os versos e diante deles, entre as sílabas, ou contidos em si, quando Bethânia calava na sua cadência) voltasse a imperar sobre a Terra. Na sequência de pouco mais de 60 itens, as canções, inversamente aos shows usuais da cantora, interpunham-se aos poemas como pérolas. Diferentemente dos espetáculos musicais — quando Bethânia lê poesia a cada quatro ou cinco canções — neste recital Maria usava a canção para pontuar a torrente de poesia. Enquanto nos shows os ápices interpretativos são nas canções, no recital elas são sínteses contidas.

O silêncio tem sido a palavra de ordem de Bethânia, desde que se instalou a controvérsia sobre o tal site de poesia, quando sua participação numa iniciativa que envolvia dinheiro público e novas tecnologias foi convertida pela quase totalidade da mídia (e pela fúria dos leitores e comentadores de sites e blogs) num processo de linchamento público raramente visto e certamente desmerecido.Bethânia, apesar de sua sabedoria, provavelmente não soube calcular, por distração ou por boa fé, nesses “tempos estranhos” em que só se sabe discutir através de sentenças maniqueístas (só existem o bem absoluto e o mal mais sórdido) o efeito que teria o seu nome — o nome de alguém tido pelo público como o de uma santa — associado ao uso do erário. Foi como jogá-la aos leões.


Desde então, Bethânia se recolheu. Parou praticamente de falar à imprensa e, num gesto radical, tirou o seu site do ar e jamais o reativou. Muita gente em seu círculo apela para que ela volte atrás nesse particular, mas ela não arreda pé: não quer nada com esse meio, o meio digital. Sente saudades, como disse no recital, dos anos 1960, 70, até os 80, quando as pessoas se reuniam para trocar emoções, no lugar de ficarem em seus mundinhos de ruídos e simultaneidades polisassaturadas.

Para sua produção, seu marketing, seus contatos, seus fãs informatizados, ficou difícil a vida sem o site. Não deixa, porém, de ser admirável ver alguém assim determinado a dar uma banana à digitália. Ela é Bethânia, “Guerreira, guerrilha” (título do livro-poema de Reynaldo Jardim relançado por iniciativa de Ramon Mello e Marcio Debellian). É Bethânia com ela mesma, e todos os santos e orixás, fazendo seu gesto de protesto, punho cerrado como em “Carcará” (perdi o bis com “Carcará” por causa de um rendez-vous telefônico de trabalho que me fez sair do teatro e que se revelou inútil).

Bethânia está além do tempo, do ruído e do silêncio. Ela sabe “fabricar distâncias”, como no poema de Jorge de Lima. E, quando ela julgar por bem, voltará ao ciberespaço. Ou não. Dane-se.Para finalizar, Bethânia recitando “Os sapos” de Bandeira fazendo inflexões coloquiais no estribilho (foi, não foi...) é um trabalho celestial de atriz. A menção ao ensino público (via professor Nestor de Oliveira) é uma porrada. E a leitura da epifania amorosa de Riobaldo, bem mais lenta e declamada do que a velocidade do pensamento quando se lê Guimarães, é uma redescoberta da pólvora.

Quanto ao “Carcará”, contaram-me que o êxtase foi tamanho que a proibição de filmar se desfez e os celulares se libertaram. E que em certo ponto, sua voz não era mais a sua voz, e sim algo que dos céus baixou. Está no YouTube, mas não vou assistir, em respeito ao voto de silêncio eletrônico de Bethânia. Só assisto quando o site voltar ao ar. Paciência se não vi. Vi, não vi, vi...

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi Ramon. Bom dia!
Ao retirar seu site da internet, Bethânia acabou "punindo" seus admiradores.
Acho que ela cometeu mesmo um erro nesse caso do site. Mas também estranhei a reação um tanto desmedida e extremamente desrespeitosa por parte de alguns contra ela. Ainda mais sendo a delicadeza em pessoa como ela é. Essa reação me fez lembrar os apedrejamentos que os "metaleiros" cometeram no 1.o Rock in Rio contra alguns cantores e grupos nacionais. Valeria tudo contra o que você não entende ou não gosta. E a internet é a terra do ódio escancarado.
Abraço.
Flavio - Rio

karina rabinovitz disse...

o livro deve ser incrível.
vou buscá-lo por aí!

Leandro Jardim disse...

Foi uma pena eu ter perdido esse grandioso evento... abração
LJ