sábado, novembro 21, 2009

ESCUTANDO OS VINIS MOFADOS

Por Paula Cajaty

Uma moça que eu nem conhecia se dirigiu a mim, a última na fila enorme de autógrafos e perguntou sorridente 'Ele tem prestígio, né?'. Atônita, eu não pude responder à pergunta feita à queima roupa.

Ainda sem o autógrafo, com o primeiro livro de Ramon Mello nas mãos, orelha de Heloisa Buarque de Hollanda, reparo que ele foi montado poeticamente como um LP e isso me fez atinar que o LP não é a mera união de lados, mas em essência é um objeto dual, contraposto, verso e reverso, o que de logo convida intuitivamente à sedução de mudar de tom.

É bom lembrar que, após o LP com sua divisão dúplice, frente e verso, veio o CD, planificado, uno, uma face de exibição, outra em que se revelava o conteúdo decodificado. E, mais recentemente, a dualidade se perdeu por completo e os arquivos digitais, que substituíram o suporte físico da música, encerram uma virtualidade latente, uma quase inexistência, uma imaterialidade que os define e caracteriza. Ramon escolheu a razão de ser do LP e, a partir disso, dessa constatação prévia e não menos profunda, eu fechei o livro. Respirei fundo. Poderia continuar a leitura mais tarde, confortável na minha poltrona preferida.

A primeira parte, o Lado A, é mais seco e mais áspero. Contundente, é o limão chupado depois da tequila. Nele, sobreleva o poema concreto, substantivo, por vezes até visual. Talvez em superfície, em primeira apresentação, todos nós sejamos assim também, menos palavrosos, menos blues e mais rock'n'roll.

No Lado A de Ramon, o poeta se permite mais, diverte-se com o ato formal do ouvir a música, exibindo seus próprios botões: play, repeat, rec. E vai, assim, dando pistas sobre o que ele escuta, o que é preciso repetir para refletir ou sublinhar, o que de precioso ele precisa gravar para que não se perca nunca.

Remix, ipod, master system, stereo, todas essas figuras são mixadas à poesia, que vai assimilando outros símbolos, ritmos de um tempo novo. Não se trata apenas de uma releitura ou remasterização dos 'Morangos mofados' de Caio Fernando Abreu, mas uma breve remissão do que sensibiliza o poeta, uma de suas tantas influências músico-literárias. Assim como ele, para escrever também eu lanço mão de algumas músicas preferidas, músicas de despertar poesia.

No Lado B, Ramon muda o disco e altera o diapasão. Não há mais o 'vinho tesão' a transbordar pelos poros ou a objetividade do 'sexo virtual :-O / hummm? / só com o antivírus! / :-( '. Seu Lado B anuncia que a voz arranhada não convence e então ele mergulha em si mesmo, 'vira o lado do disco', revira suas reminiscências, seu baú de antiguidades e suaviza a música numa sonoridade leve e melodiosa que pode até embalar o sono e fazer 'sonhar usando céu de cobertor'.

Em 'Vinis mofados', Ramon exibe uma poesia pensada no mundo dual do vinil, mas produzida em mp4, num mundo que há muito já se tornou multimídia (enquanto nós permanecemos duais), e assim ele se propaga, simultaneamente, por vários sentidos.

Talvez Ramon tenha prestígio, sim. Mas, muito mais do que isso, o que eu sei agora é que ele tem poesia e, além do mais, gosta de uma música para lá de boa. Com o sorriso do gato de Alice nos lábios, ler Ramon é ler o presente: let's rock.

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