sábado, novembro 21, 2009

SOBRE VINIS MOFADOS

Por Francisco Araújo

Dizem os linguistas, e dizemos nós, papagaiando, que o recorte do pensamento em língua não apresenta sincronia, paralelismo perfeito. O pensamento – uma coisa, a língua – outra coisa e outra coisa são as coisas. O inusitado do enleio dos três elementos é que, apesar disso, um está para o outro e de alguma forma, somente para o outro existe. A língua é elo entre o pensamento e as coisas, pois as coisas nem são sem que se pense ou pronuncie uma palavra e também, porque não se sabe se há pensamento vazio de palavras ou que no vazio pensamento possa ser.

Vindo por esse caminho, chegamos aqui, em Vinis mofados, onde se canta os tropeços dessa conexão pensamento-língua-coisa. O poeta tem o elemento do meio para moldar e nos revelar dos outros dois. Barthes foi o que considerou, questão presente na poesia de Ramon, o fascismo da língua, que toda língua é fascista por nos impor um molde, a sintaxe, a morfologia, a fonética, áreas particularizadas em cada língua, que assim, recortam apenas algumas das possibilidades do repertório maior de ordem, forma, sons. Coisa que sabemos pelas outras línguas. Além das possibilidades imagináveis, pois que imaginar é preciso.

Começamos a ler Vinis pelo Lado A, que por ser livro de nossa cultura de ler livros virando páginas da direita para a esquerda, sugere menos que um vinil que se comece por qualquer lado. Excetuando-se os metódicos. Continuando, chegamos então ao oitavo poema e já percebemos algo da obsessão e angústia do fascismo da língua no moldar da palavra. A palavra palavra está de modo central em sete desses oito, pois que há uma pausa de dois versos para Araruama. O Lado A, portanto, apresenta mais frequentemente a palavra na oficina, em metáforas que a caracterizam, em propostas de definição, coisa de que pode ser síntese o poema Dicionário, que tem a graça de nos mostrar que a busca implica em andar em círculo: palavra é grade cela prisão / guarda de poesia / palavra é delírio / palavra é / palavra. Com um pé na porta para as ruas do Rio, Ramon prepara seu discurso, revela algumas das referências, nos mostra seus discos e nos envolve de prazer sincero e simples. É quando começamos a gostar. Porque poesia não é coisa de que gente muita prática precise e, quem pergunta para que serve, já se protegeu do lirismo e da sofisticação das elaboradas e belas coisas inúteis. Paciência é preciso.

Já para o final de Lado A encontramos Ramon com o pé na rua, na companhia do outro, na companhia de muitos, doce urbanoide, e curioso é, que o Rio-natureza não apareça. Pelos encontros com pessoas e coisas é ele atingido e na volta rumina seus instantes, quebrando seus versos, que encontram a semântica num próximo: não prometo amor / perfeito eterno apenas / uma trepada na noite / de sábado goza veste / a roupa e vai / embora. E em versos quebrados são os instantes urbanos, o barulho da cidade e os cérebros eletrônicos, e com estes nosso novo vocabulário, pois que outro caminhar do livro é o do analógico para o digital. O digital bem assumido no dia-a-dia, mas sem deixar de nos contar da melancólica sensação de frivolidade e frustração presentes nas imensas memórias que muito armazenam e nas interações de cada santo dia. Depois de certa altura há instantes de simples lamento, de desabafo, de saudades, de doce carência. E quando é muito direto, requer, mais nesse que em outros casos, um leitor desprotegido e desarmado. Afeto é preciso.

Da geração sem ideologia, é o que se afirma dos nossos artistas, os da nossa geração. Se isso é bom não se sabe, mas sabemos que foi mal e a vida de Ossip Mandelstam, dentre outros artistas russos que cantaram a Revolução de Outubro e se viram sem espaço no pragmatismo da execução do projeto, disso nos dá testemunho. Este era poeta sóbrio e nos avisou que a ideia de progresso, para a arte, não vai bem. E concordamos que não vamos a lugar algum com isso, que só para o prazer existe, e quando reclamamos aos que organizam as coisas é somente para continuar fazendo e apreciando. Se é para servir a projetos de admiráveis mundos novos o instrumento não deve ser a arte, que não deve nunca confirmar sempre, mas cartilhas, que repetem, repetem e hipnotizam. Ramon não vai por aí, mas não é raso porque mergulha em si, nos outros corpos, sente seus cheiros e sonha com corpos para o perfeito encaixe. Vez ou outra sobra alguma dor de cotovelo de amor romântico, digerida num lamento-desabafo.

Lendo e relendo ficamos íntimos do livro, que dá vontade de chamar livrinho, de diminutivo carinhoso. Ramon Mello começa bem, bem devassado e nos atinge, pois que afeto temos e experimentamos a busca da dicção, a busca do amor. E nos apaixonar pelo poeta e seus poemas somos capazes se para nós também uma coleção de músicas na cabeça tenha sido sempre bom pretexto e se, por último, também nosso riso está tão próximo do choro. Poemas de riso e lágrima e dor disfarçada – Palhaço. Arranhões, voz arranhada, riscos no disco, agulhas quebradas traduzem a desarmonia que assalta o poeta, que quebra versos, recortando instantes, matando palavra em livro – matar palavra é boa metáfora. Vinis mofados é um prazer – o prazer da palavra em verso, prazer do livro-objeto, da bela capa, da textura macia. Será um prazer acompanha-lo, Ramon, que o voo de agora é de boa altura, já esperamos vê-lo passar das nuvens.

Um comentário:

Alex Mendes disse...

LINDO!