sexta-feira, abril 15, 2011

SOBRE MARIA BETHÂNIA


BETHÂNIA E AS VIRGENS DESERDADAS

Por Inês Pedrosa

[Artigo da escritora portuguesa Inês Pedrosa, diretora da Casa Fernando Pessoa, publicado no jornal Estado de São Paulo, em 31.03.2011]


Bethânia e as virgens deserdadas

Durante os breves dias que passei agora no Brasil, pasmei com a ferocidade da campanha contra um projeto de poesia de Maria Bethânia. O meu pasmo foi subindo de degrau em degrau a cada hora de cada um dos cinco dias e terminou num miradouro de indignação. Parece-me útil dar a ver aos brasileiros o panorama feio que os meus portugueses olhos divisaram – amo demasiado o Brasil para poder ficar fora dele mesmo quando ele me deixa fora de mim, mas temo que assim não aconteça com corações mais turísticos do que o meu.

O coro de virgens ofendidas com a verba que o Ministério da Cultura autoriza a captar para o projeto de Bethânia ( um milhão e trezentos mil reais) é patético por diversas razões, a primeira das quais é a suposição cândida de que, a não ser investido na divulgação de poesia de língua portuguesa a que Bethânia se propõe, esse dinheiro seria canalizado para escolas, hospitais e o escambau. Verdade seja que a lista dos projetos aprovados pelo Ministério da Cultura inclui muita coisa que, vista de fora, me parece o escambau. Em Portugal, a Lei do Mecenato não funciona, porque o conceito de desenvolvimento através das artes ainda não conseguiu furar a massa cinzenta dos empresários lusitanos. Por isso, os apoios à cultura saem directamente do bolso dos contribuintes, o que os torna sempre polémicos e sujeitos à conspiração das invejas organizadas – a mais eficiente organização do país.

Eu tinha a ilusão de que o Brasil não era assim – via o Brasil virado para o futuro, incompatível com o ressentimento. Ainda quero ver, porque o Brasil onde eu moro e quero cada vez mais morar é povoado por artistas que se inspiram mutuamente, estudiosos ousados, enfim, gente que não perde tempo a envenenar-se e a envenenar os outros. Pobres puritanos da moral alheia: a grana que patrocinará Bethânia nunca serviria para pagar outras coisas. Porquê? Porque Bethânia não é uma coisa qualquer. O que ela faz tem repercussão. Possui um talento e uma voz únicos. Aguentem-se.

Porque será que só o projeto de Bethânia é sujeito ao escrutínio da maledicência? Porque Bethânia é uma estrela – de fato. Enche quantas vezes quiser as maiores salas de espetáculos de Portugal, da Europa e de várias partes do mundo. Porque o Ministério da Cultura do Brasil a subsidia? Não: porque tem um percurso internacionalmente reconhecido. Como cidadã da gloriosa pátria da língua portuguesa – a única pátria em que, tal como Fernando Pessoa, me reconheço – agradeço-lhe diariamente o seu trabalho de muitas décadas em prol da poesia e dos poetas desta língua, de Pessoa a Guimarães Rosa, de Vinicius de Moraes a José Régio, de Sophia de Mello Breyner Andresen a João Cabral de Melo Neto. Se me tornei, ainda adolescente, leitora de José Régio, a ela o devo. O meu fascínio por Pessoa começou com a voz dela. E foi dela que recebi o primeiro estímulo para a descoberta da sublime literatura brasileira. Não há muitos cantores populares por esse mundo que se dediquem, de um modo contínuo, a este trabalho pioneiro e pedagógico. Penso que a visível subida do nível cultural do Brasil nas últimas décadas deve muito a Maria Bethânia. E tenho a certeza que a literatura portuguesa tem uma dívida imensa para com ela – toda a minha geração foi tocada pelos seus poetas, mesmo ou sobretudo quando, aos vinte anos, ia ouvi-la apenas para encontrar consolo para a vertigem das paixões mal sucedidas.

A 8 de Março de 2010 fui ao Rio de Janeiro para, em nome da Casa Fernando Pessoa e em parceria com o Instituto Moreira Salles, galardoar Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli com a Ordem do Desassossego, então instituída. Quisémos que a primeira atribuição dessa Ordem fosse uma homenagem ao Brasil e a essas duas heroínas da divulgação da obra de Fernando Pessoa. Pouco depois, Bethânia foi a Portugal fazer um show e contactou-me, dizendo que queria oferecer um recital de poesia de língua portuguesa na Casa Fernando Pessoa. E ofereceu – sim, gratuitamente, escandalizem-se, oh virgens! – um espetáculo belíssimo, concebido, encenado e realizado por ela, aliando interpretação e canto, com uma inteligentíssima seleção dos maiores poetas de Portugal e do Brasil. As paredes da Casa iam estourando, tal a multidão e o deslumbramento.

Nessa ocasião, Bethânia falou-me da sua vontade de levar pelo interior do Brasil e de Portugal um conjunto de espetáculos destes, exclusivamente dedicados à poesia. Que Bethânia ou alguém próximo dela ( porque Bethânia nem sequer é praticante da religião das redes virtuais) tenha acrescentado a esse projeto a circulação dos poemas ditos na internet, parece-me uma excelente e eficaz ideia. Sim, opulentos invejosos, já há muita poesia na net – mas não dita e encenada por Bethânia. A voz e o critério dela chegam mais longe, movem mais almas – é isso que não se lhe perdoa. Caetano já o disse, numa crónica coruscante, no “Globo”. Mas eu quero repeti-lo, porque não sou irmã dela – amo-a, sim, como comecei a amá-lo a ele, desde a mais tenra juventude e sem os conhecer de parte alguma nem saber onde ficava Santo Amaro da Purificação, de onde ambos vieram, sem patrocínios nem padrinhos, para acrescentar luz e força às nossas vidas. Amo-os porque as suas vozes e os seus dons criativos me fizeram e fazem acreditar que o mundo pode ser um lugar mais belo e mais sábio. O Brasil está a dar certo porque eles – e muitos outros como eles, e uma multidão com eles – assim o quiseram. E isso só não vê quem não quer – ou não é capaz – de ver.


***

AINDA SOBRE BETHÂNIA

Por Ramon Mello

Sinto a necessidade de reafirmar minha posição sobre a polêmica em torno do projeto do blog ‘O mundo precisa de poesia’, idealizado por Hermano Vianna, em que a cantora Maria Bethânia foi convidada a realizar leituras diárias de poemas.

Assim que a questão foi levantada na web, afirmei concordar com a declaração do cineasta Jorge Furtado: “Na minha opinião, o governo brasileiro deveria tirar do seu caixa o dinheiro (1,3 milhões de reais, uma ninharia perto da roubalheira do Detran gaúcho, dos pedágios paulistas, da máfia do governo Roriz/Arruda no DF, etc, etc...) e entregar para a Maria Bethânia, junto com um buquê de rosas e um cartão, pedindo desculpas pela confusão”.

Respeito e admiro Maria Bethânia por tudo que já realizou para música brasileira e para literatura em língua portuguesa. Estamos falando de uma grande artista, com mais de 45 anos de carreira, que mantém uma relação legítima com sua trajetória. Uma mulher que estudou em escola pública e se dedicou a vida propagar os nomes dos poetas: “Os nomes dos poetas populares deveriam estar na boca do povo!” (Antônio Vieira)

Bethânia cobrou (leitura e elaboração) R$ 1.643 por cada um dos 365 vídeos - o que é justo. O valor aprovado para captação do projeto - R$ 1,3 milhão – o Minc entendeu que era correto, após realizar cortes no valor original. Há sites e shows aprovados com valores até superiores (e justificativas questionáveis), mas pegaram Bethânia para bode expiatório.

Penso que o momento é propício para uma discussão ampla com Ministério da Cultura sobre as políticas culturais do país e a readequação de leis de incentivo, que foram fundamentais, mas hoje estão defasadas, como a Rouanet e a do Audiovisual. Devemos cobrar essas mudanças ao MinC e não denegrir a imagem de uma artista que tanto contribui para nossa cultura.

Enfim, desejo, sinceramente, que Maria Bethânia consiga realizar o projeto ‘O mundo precisa de poesia’.


Solução

(Raul Sampaio e Ivo Santos)

Tu verás que eu ainda sou
O que mais deseja te ajudar
Venho te pedir tempo pra pensar
E deixa essa gente falar de mim
Quero ouvir o tempo lhe dizer
Que a vida inteira há de pertencer
O que o tempo diz, o vento não desfaz
Nem a língua de quem fala demais


4 comentários:

Anônimo disse...

Oi Ramon.
Certo, foi feito o desagravo. Mas fica parecendo que questionar o procedimento e seus termos é uma afronta, uma audácia do público.
Eu acho que devemos questionar sim! Demonstrem respeito e COMEDIMENTO para com os recursos públicos!
Gosto muito da Maria Bethânia, mas essa foi uma pisada na bola.
Um abraço.
Flavio - Rio
PS. Quando sai o próximo livro?

Anônimo disse...

Bom ver uma visão crítica de quem está "de fora".

Ramon Nunes Mello disse...

oi. flávio.

seu comentário me instigou a escrever a respeito da polêmica. coloquei o texto no final da postagem

abraço, ramones.

ps: novo livro ainda em elaboração, devagarinho...

Anônimo disse...

Oi Ramon.

Li o texto. Você tem uma posição diferente da minha.
Reitero que não se pode transformar um pedido - que pode ser discutido, questionado e negado - em direito natural. A grandeza do artista não importa.
Além disso, e acho que foi o principal, me incomodou a maneira como alguns fãs fizeram a defesa. Foi o motivador do comentário anterior.

Vida que segue.
Estamos aguardando o próximo livro.
Abraço.
Flavio - Rio.